domingo, 15 de janeiro de 2012
ELEGÂNCIA E O SELF
DESCONHEÇO A AUTORIA
Alma, Elegância e Instituição
Dulce Helena Briza
“Elegância é tudo aquilo que é belo, seja no direito, seja no avesso.” Coco Chanel
“Sem elegância no coração, não há elegância.” Yves Saint-Laurent
“Há pessoas elegantes e pessoas enfeitadas.” Machado de Assis
Falarei aqui sobre a elegância da alma e alma da elegância. Desnecessário lembrar que aqui elegância não se trata de etiqueta e luxo. Ao contrário, a definição de elegância passa pelo caminho da simplicidade em direção à eficiência. Na maioria das vezes vemos que na matemática, na filosofia, na arquitetura, nas artes, a solução elegante é sempre a mais simples. “A simplicidade é a sofisticação fundamental”, diz Leonardo da Vinci.
Sócrates, que não era uma figura externamente elegante, chegou a uma simples verdade, com toda a elegância, quando afirmou que sabia que nada sabia.
Grandes personalidades que conhecemos como Gandhi, Cristo, Madre Teresa, Dalai Lama, Martin Luther King, não eram necessariamente pessoas de beleza e elegância física, mas foram pessoas de extrema elegância de alma.
A elegância e a criação também provem do amor e da sensibilidade. Machado de Assis disse que “o amor e as musas nasceram no mesmo dia”.
Ser elegante é ligar-se ao aprimoramento pessoal, ao criar e recriar. É também uma questão filosófica, existencial e de valores. É ter caráter. E o caráter também se conecta à alma instintiva, que gera a inteligência imaginativa, que engendra a criação de si mesmo e do mundo. Hillman afirma: “Nós não nos conhecemos, nós nos descobrimos”. (Hillman, 2001: 209) Ter caráter é não ser inocente ou ingênuo. E diz ainda: “O autoconhecimento aparece e desaparece como insights no jogo da vida”. (Hillman, 2001: 209)
Ser elegante é ser ético: “A ética emerge do caráter, não como uma virtude ou um defeito, mas como a particularidade e peculiaridade de cada caráter”, diz Hillman. (Hillman, 2001: 211)
A pessoa elegante sabe que tem como parceira uma alma bailarina, dançarina mercurial, sem a qual a vida não tem sentido, porque a vida pra valer se opõe à vida que se vê. E que essa dançarina fortuita, que às vezes se esconde atrás de véus, é artífice de mil facetas. E nos sensibiliza, nos mobiliza, nos encanta, nos desencanta, nos assusta, desliza, revitaliza, nos faz criar e recriar. É sagrada e profana, percorrendo caminhos da luz, da sombra e do intangível, dos céus e dos infernos, fazendo-nos dançar com anjos e demônios.
A alma elegante busca criativa e intuitivamente criar-se a si própria e tornar-se si-mesma. Busca a harmonização do consciente com o Self. Talvez essa seja a maior obra de criação. Esta pede uma ordenação interior e nós nos orientamos ao que criamos através do que selecionamos em relação às nossas expectativas, medos, anseios, sensibilidade, cosmovisão. Assim, nossa ordem interior é projetada naquilo que criamos. É necessário, portanto, que tenhamos uma importante percepção de nós mesmos para criar. Para fazê-lo é preciso que sejamos sensíveis. E a sensibilidade é assunto primordial para a alma elegante.
A elegância transcende a matéria e, portanto, se reporta ao espírito e à alma, que busca a essência das coisas.
Para Sócrates, o único bem é a sabedoria, o conhecimento, e para Nietzsche, aquilo que os homens têm mais dificuldade em compreender, desde os tempos mais remotos até o presente, é sua ignorância acerca de si mesmos. O “conhece-te a ti mesmo” é evocado em diversas culturas, de várias formas e quando Jung fala do processo de individuação, diz que ela “é um tornar-se consigo próprio e ao mesmo tempo com a humanidade, em que também nos incluímos” (Vol. XVI, § 227).
O Self, arquétipo central, é nada mais, nada menos do que o secreto “spiritus rector” de nosso destino, o que nos faz ser e evoluir.
Assim, a realização do si-mesmo está ligada à ética, não à ética moralista, e sim à ligação profunda com o Self, com a libertação de valores externos irracionais, que propiciará, então, todo ato de criação.
Como diz Andrew Bard Schmookler, “O bem não irá governar o mundo no dia em que vencer o mal, mas no dia em que nosso amor ao bem não pretenda mais realizar-se como triunfo sobre o mal. Quando a paz vier, ela não será criada pelos que de si fizeram santos, mas pelos que com humildade, aceitaram sua condição de pecadores.”
A criação e a alma elegante buscam o sentido, não a “perfeição”, a união dos opostos que gera o símbolo, apesar das adversidades. Sabemos que a alma é multifacetada:
“Se as coisas são estilhaços
Do saber do Universo,
Seja eu os meus pedaços
Impreciso e diverso.”
Fernando Pessoa (Pessoa, 1983:407)
A alma elegante busca a essência e a verdade em si mesma. Evita as falsas certezas e o auto-engano. Suporta ser complexa e contraditória. Procura ser livre, ousada e pluralista. Foge do ideal de ser para ser o que realmente é. Sabe que a dúvida cresce com o saber. Sabe ser justa e indaga: “Poderia alguma coisa revelar uma falta de formação mais vergonhosa do que possuir tão pouca justiça dentro de nós mesmos que se torna necessário obtê-la dos outros, que desse modo tornam-se nossos senhores e juízes?” Platão “A República”. (Giannetti, 1997:213)
Poder ser o que se é com dignidade, humildade e inteireza é uma obra de libertação e de elegância. Poder ser livre e agir como de fato se pensa, com ética, zelo e responsabilidade é fazer uma obra de arte do viver. “A elegância da honestidade não precisa de adornos”, diz Mary Browne.
Viver sem o auto-engano é elegante, pois “nós estamos tão acostumados a nos disfarçar dos outros, que acabamos nos disfarçando de nós mesmos”, como observa La Rochefoucauld (Giannetti, 1997:121). A alma elegante não se assusta diante do novo, procurando transformar-se e estabelecer novas dinâmicas. A elegância é um estado de espírito. O indivíduo que dança com sua alma e com a anima mundi forma seu caráter elegantemente. É solidário, é sóbrio, é solícito, é atento.
A elegância é acolhedora, generosa, não é preconceituosa, é atenciosa, regeneradora e geradora. Pede a grandeza da alma, pois “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, escreve Fernando Pessoa.
Às vezes é confundida por pessoas menos sensíveis como sedutora, frágil, submissa ou insegura, pelo fato de ser gentil, de saber elogiar, de ser magnânima, respeitosa ou ciente de suas limitações.
Mas sabe perdoar, é delicada, sutil, administra os conflitos, as polaridades, as idiossincrasias. É terna, tolerante, não é prepotente nem arrogante. Procura ouvir mais do que falar, mas quando dá sua opinião o faz com firmeza. Respeita o diálogo, é democrática. É nobre, justa, corajosa. Supõe integridade, comedimento e comprometimento. É erótica e sabe que entre outras características, estão nela os impulsos criadores.
No “Banquete” de Platão, Agáton afirma que um atributo de Eros é a graça “porque Eros e a deformidade estão em hostilidade perpétua” (Platão, 2005:48). É a sabedoria de Eros que faz nascer e crescer tudo quanto é vivo. Eros inspira o amor e a beleza. “Ensina-nos a doçura, mata a rudeza, concede-nos a benignidade e expulsa a maldade dos nossos corações.” (Platão, 2005:50)
“O verdadeiro Eros não tem nada a ver com a vontade de impor nosso próprio plano e nossas próprias idéias sobre os outros” (Guggenbühl, 1978: 151).
Isso nos faz pensar na ética e elegância dos terapeutas.
A análise deve propiciar ao paciente uma oportunidade de restaurar sua unidade primeva e tenta tornar possível a expressão total e livre de sua individualidade. Para isso, a postura do analista deve ser de:
– acolhimento carinhoso e aceitação dos vários tipos de pacientes;
– tentar ao máximo evitar os preconceitos;
– não se deixar idealizar pelo paciente e mostrar que é humano, sujeito a falhas, para que o analisando também o possa ser. Para lidar com a sombra de quem está sob seus cuidados, precisa estar ciente de sua própria sombra. “Sombra do analista constela sombra no paciente” (Guggenbühl, 1978: 86).
– ter humildade e saber de seus limites;
– ser respeitoso, atento e responsável. Jung comenta: “As questões decisivas da psicoterapia não são um assunto privado – representam uma suprema responsabilidade” (Vol. XVI § 448-449);
– ser ele mesmo;
– estar atento ao abuso do poder, à charlatanice e à postura de “salvador da pátria”;
– trabalhar bem não só a transferência, mas a contra-transferência;
– saber que a função dele não é “curar”, mas facilitar o encontro do paciente com seu inconsciente, com o Self e, a partir daí, criar uma nova dinâmica consigo mesmo, indo em busca de um sentido, percorrendo seu caminho de individuação. Nisso está embutida a ampliação da consciência;
– respeitar o sigilo do vaso analítico;
– não usar ou manipular os pacientes para adquirir benesses emocionais ou materiais;
A análise também implica na maiêutica socrática e o analista deve ter em conta que o trabalho com cada paciente é uma preciosa e delicada renda, tecida muitas vezes com sofrimento e sacrifícios. O analista precisa ser corajoso e saber que nem sempre o código ético coletivo é igual ao do indivíduo, mas sim que está ligado à ética do Self, da possibilidade, da libertação e da criação. Portanto, ele jamais será um juiz e saberá que o Mal faz parte da Psique e também pode alavancar a transformação das pessoas. Como sugere Guggenbuhl, “Só quem tem a liberdade de destruir pode livremente voltar-se para o mundo com amor” (Guggenbühl, 1978: 121). Deve saber que a ética do sensível é uma grande facilitadora para o processo de individuação. Jung afirma que “o intelecto é de incontestável utilidade, mas além disso é também um grande embusteiro e ilusionista sempre que tenta manusear valores.” E que “uma percepção meramente intelectual pouco significa, pois o que se conhece são meras palavras e não a substância a partir de dentro” (Vol. IX-II § 60). E que “no decorrer do tempo, o que é lógico se transforma em disparate. Infelizmente é esse o destino das concepções metafísicas.” (Vol. IX-II § 65).
E nós analistas, em relação às instituições, somos elegantes?
Até que ponto o desejo do sucesso a todo custo e do poder fazem com que nossas instituições adoeçam? Trabalhamos com alma a expansão do pensamento em que acreditamos ou usamos as instituições para satisfazer nosso lado narcisista e carente de poder?
A alma elegante apóia e incentiva o sucesso do outro, pois sabe que no universo brilham inúmeras estrelas e que elas não se indispõem por uma brilhar mais do que a outra.
“O gesto verdadeiramente elegante está geralmente acompanhado pela excelência do coração”, diz Henry Fielding.
Somos solidários e elegantes com nossos colegas de profissão?
No “Banquete”, Platão nos fala sobre o amor. E nos mostra a importância de amarmos o diferente, pois é comum amarmos o que projetamos e o diferente nos ameaça. Será que as pessoas estão maduras e suficientemente fortes para aceitar e refletir sobre idéias que não lhe são familiares sem se sentirem frágeis ou ameaçadas? Muitos tomam as idéias diferentes das suas como uma questão pessoal: “Se você pensa diferente de mim, logo está contra mim”. É muito freqüente vermos pessoas discriminadas e tolhidas por conta dessa avaliação. E muitas vezes pensamentos brilhantes, que poderiam ser aproveitados para o crescimento do grupo, são abortados. Perde-se o entusiasmo, tão valorizado por Platão, e instala-se a mediocridade.
É importante lembrar que pertencemos a uma instituição; não somos a instituição. Isso deveria estar sempre presente na mente dos indivíduos que fazem parte dela, principalmente aqueles que ocupam cargos de direção. Pois freqüentemente o autoritarismo é disfarçado em acolhimento, gerando uma resistência a inovações e os dirigentes sofrem a tentação narcísica de se sentirem superiores a outros elementos do grupo. O empenho em alcançar interesses pessoais fica muito acima daquele de lutar e trabalhar pela causa inicialmente abraçada.
Assim notamos membros que, sob o manto do servir, servem-se. E outros que são impedidos de trabalhar e mostrar seu trabalho por um grupo corporativista, egoísta e medíocre. Novos valores e novas idéias são rechaçadas, pois os “pais terríveis”, ávidos de poder e de reconhecimento sentem-se ameaçados, mantendo sua autoridade sobre filhos que anseiam por crescer e se tornarem independentes. São os reis que já estão mortos e não cedem seus lugares, ativando o lado negativo do arquétipo do senex e, da mesma forma, o lado negativo do puer. Assim o grupo entra num estado de degradação. Lembremos que Jung comentou que um caminho unilateral leva à barbárie.
Seria saudável e elegante, por parte da instituição, que aflorasse o lado positivo do casal parental, acolhendo e alimentando de conhecimento seus filhos, auxiliando-os na tomada de consciência e no trabalho com a sombra, facilitando a busca de inspiração para criar. É muito pouco saudável alimentar Narcisos que não podem reconhecer a existência do outro porque, se o fizessem, teriam que se haver com suas fragilidades e limitações.
É importante que as instituições formem colaboradores e agentes de transformação na sociedade, que possam dar o melhor de si, e não indivíduos amargos e desiludidos, frutos de egos inflados, dependência, hostilidade, antropofagismo.
Seriam então sociedades “oxigenadas”, onde idéias e teorias pudessem ser debatidas sem medos e preconceitos, enfim, de pessoas com liberdade para dizerem o que pensam e expressarem o que realmente são. Suas bases estariam fincadas no amor e no respeito e dar-se-ia muita atenção à sombra e ao abuso de poder, que geram processos autodestrutivos, como dissidências sombrias e fragmentações.
Dentro desse tema, consideremos tanto o indivíduo arrogante quanto o que faz sua contrapartida, o servil interesseiro, que abre mão de sua dignidade e é via de regra um bajulador hipócrita, que atuam como estagnadores de um processo de evolução e desenvolvimento da alma, tanto a pessoal como a coletiva.
Instituição saudável é aquela que tem consciência de seus limites e lida com seus conflitos e crises, sabendo que estas servem para uma re-orientação transformação e renovação de seus membros e da sociedade em que está inserida. É a que elegantemente prioriza sua alma.
Inúmeras vezes os donos de alma elegante foram sacrificados, pois diziam o que lhes fazia sentido e se expuseram ao risco de ser uma ameaça à sociedade.
A Sócrates foi oferecida a oportunidade de fugir ao ser condenado à morte. Ele, entretanto, rejeitou, aceitando o sacrifício e seguindo os apelos do seu “daimon”.
No dia de sua morte, teve o cuidado de lavar-se antes para não dar trabalho a Xantipa, sua esposa. Pegou a taça com o veneno com tranqüilidade e levou-a aos lábios sem hesitar. Acalmou seus discípulos, que choravam, e pediu que demonstrassem coragem. Antes de fechar os olhos para sempre, recomendou a Críton que sacrificasse um galo para Esculápio. E assim morreu com serenidade e elegância.
Esse homem foi acusado de corromper a juventude, enquanto sabemos que postulava o encontro e cultivo da alma e da verdade, incitando os jovens a se aprofundar no conhecimento deles mesmos, provando que “das riquezas não se origina a virtude, mas da virtude se originam as riquezas.” (Platão, 2000: 82) Sócrates foi íntegro e fiel a si mesmo até a morte. Fez seu difícil caminho de individuação, sempre leal ao seu “daimon”. Nietzsche certa vez comentou que a alma aristocrática tem o respeito de si mesma. A alma elegante igualmente tem o respeito por si mesma.
O ego tenta controlá-la e fazê-la caminhar por uma estrada unilateral muitas vezes distante de sua própria realidade, que é complexa e multifacetada e percorre caminhos tortuosos.
O ato elegante é devotado à alma e o ego deveria ser um bom tradutor da linguagem da psique, de suas imagens, fantasias, sonhos, símbolos, metáforas, mitos e ambigüidades.
A verdadeira elegância implica no respeito, cuidado e uma atenção profunda no trato com a sensibilidade e os meandros da alma. E é mister observar que nossos caminhos são diversos. O importante é que se caminhe com alma e elegância.
“Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor destino, se eu, se vós, é segredo para todos, exceto para a divindade”. (Platão, 2000: 97)
Referências Bibliográficas:
ASSIS, Machado de (2008). Migalhas de Machado de Assis. Ribeirão Preto: Editora
Migalhas.
GIANNETTI, Eduardo (1997). Auto-Engano. São Paulo: Cia. das Letras.
GRÜN, Anselm (2004). Convivendo com o Mal. Petrópolis: Editora Vozes.
GUGGENBUHL-CRAIG, Adolf (1978). O Abuso do Poder na Psicoterapia. Rio de
Janeiro: Editora Achiamé.
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