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por Eliana Miranzi

É curioso notar como, por tantas vezes, artistas usaram espelhos em seus quadros. A bem da verdade, não só na pintura, mas também na literatura, escritores usam e usaram inúmeras vezes a figura do espelho. (Ex: “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, o poema de Cecília Meireles, “Retrato”, etc.).
Desde sempre o espelho exerceu um grande fascínio sobre o ser humano. Há mitos, lendas, superstições e várias histórias que envolvem espelhos. Vejamos, portanto, em primeiro lugar, o conceito do que é um espelho. Do dicionário, temos que é feito em geral de vidro, com uma superfície refletora constituída por uma película metálica; objeto que serve para refletir imagens; é reflexo, representação. As palavras “refletir” e “representar” já nos dão uma idéia de que além do objeto em si, há bem mais por traz de um espelho. Nossos pensamentos são espelho e reflexo de nossa inteligência, memória, vivencias, nosso consciente e subconsciente. É por isso que há estudos na Filosofia e na Psicanálise sobre esse assunto. Por ex., trabalhos de Michel Foucault, Jacques Lacan,etc. Cada um traz uma teoria diferente sobre o espelho,seu significado e importância, teorias estas sempre enriquecedoras e esclarecedoras.
A palavra espelho vem do Latim “speculum”, que nos remete a “especular”, inquirir, questionar. No Inglês, a palavra é “mirror”, e no Francês, “miroir”, ambas também vindas do Latim, significando “mirar”, olhar, admirar-se, questionar. Portanto, é objeto que auxilia no auto-questionamento, no auto-conhecimento, tendo uma abrangente simbologia e representação. O espelho simboliza identificação, contemplação, iluminação, verdade, conhecimento; o inconsciente e a alma. Ao mesmo tempo, podemos nos lembrar também o fato de que nossos olhos são como espelhos. Refletem as imagens que estão diante de nós. Portanto, temos em nós próprios, nossos “olhos-espelhos” da realidade, se bem que sempre invertida. (Invertida também é a atitude da tentativa do auto-conhecimento, olhos voltados para dentro). Há quem diga que os olhos são “espelhos da alma”, ou “janelas da alma”...
O espelho torna o que é estranho, familiar. E ao mesmo tempo, passamos a estranhar o que ele retrata, olhamos com espanto aquilo que ali se apresenta, pois nunca nos vemos como realmente somos. Nossa imagem é percebida como se fosse um “outro” que nos observa.
Há o antigo mito que se refere a uma imagem refletida na água, tal qual num espelho: o mito grego de Narciso, belíssimo jovem, incapaz de amar, que ao ver-se refletido na água (espelho), encanta-se com sua própria beleza, apaixona-se por si próprio. Tenta capturar a imagem que vê, deixando-se afogar e morrer, na tentativa de apoderar-se dela.
Nos contos de fadas há espelhos reveladores, fiéis à verdade. Nas lendas é usado como símbolo de passagem para lugares imaginários, improváveis, impossíveis. Um espelho partido pode trazer desgraças, segundo os supersticiosos. Os judeus cobrem os espelhos da casa com panos, quando alguém da família morre. Há lendas que dizem que alguns povos temiam os espelhos, pois entendiam que eles roubavam a alma das pessoas que os usassem.
Portanto, não é por acaso que o espelho esteja sempre tão ligado à arte, pois esta, como já vimos inúmeras vezes, é reflexo de seu criador, expressão de sentimentos, busca da perfeição e do Belo, assim como retratação de imagens da realidade e do subconsciente. A obra de arte serve como fonte de conhecimento do psiquismo humano.
Somos, como espectadores da estética artística, “Narcisos” buscando-se a si mesmos nos “espelhos da arte”. Ao contemplar o que um artista retrata “co-agimos” com ele, “entramos” em sua obra, que como o espelho, nos serve de passagem para outros mundos.
Deve também ser salientado o fato de que pintores da Renascença e mesmo de outros períodos usaram o espelho como objeto funcional na execução de seus desenhos, através de artifícios tais como a câmera escura ou “obscura” a fim de melhor desenhar. Com o reflexo do objeto de seu desenho projetado por essa câmera, ficava-lhes mais fácil serem fieis à realidade do que viam e iriam pintar.
Podemos, além disso, nos lembrar de que ao colocar-se dois ou três espelhos ao lado ou de frente um para o outro, temos o efeito da repetição da imagem incontáveis vezes. Até o infinito. É um estranho mistério aos nossos olhos, mas facilmente explicável pela Física. Outro efeito é semelhante a um labirinto, sem saída visível. Há ainda a distorção de imagens de espelhos côncavos ou convexos... Outro mistério que atiça nossa curiosidade.

Quadros com espelhos:
(OBS. Coloquei aqui quadros com espelhos, não necessariamente retratando pessoas, e nem sempre com reflexos. A escolha foi mais ou menos aleatória, não tendo obrigatoriamente seguido um critério específico.).

Salvador Dali – “A Metamorfose de Narciso”. (ilustração: Enciclopédia Larousse, vol.7, pág.791).
Nessa obra surrealista vemos a representação onírica de um Narciso metamorfoseado em dedos que seguram um ovo (vida), de onde brota uma flor, reflexo de um Narciso com a cabeça nos joelhos, mais à esquerda. Ao fundo outras imagens de sonhos ou, de qualquer maneira, de um subconsciente atormentado e de difícil compreensão para nós, por tratar-se da representação de um “sonho-paranóide”.
Dizem que Dali era um ególatra e possuía uma auto-estima que ia muito além dos padrões considerados normais. Vaidoso, ambicioso, megalomaníaco. Ouviu uma história certa vez contada por dois pescadores da região da Catalunha, que falavam de um homem que passava horas mirando-se no espelho. E diziam que o homem tinha “bulbos na cabeça”, expressão catalã que se refere a pessoas mentalmente doentes. Seu Narciso pode ter nascido daí.
No quadro há pessoas dançando, Narciso ajoelhado com a cabeça no joelho (a água é muito escura e não o reflete). Não podemos ver sua face. À direita uma mão segurando um ovo, com uma flor, imagem com a mesma forma e postura do corpo de Narciso. A rachadura no ovo é reflexo do cabelo de Narciso. Há quem diga que esse quadro é um auto-retrato. A unha, o polegar, representam a autoconfiança, que, no caso, aparece rachada. Ele mesmo se definia como metade um homem comum, metade gênio. O ovo é a representação do poder criador da luz, da vida. Representa morte seguida de vida. Sendo representação de sua cabeça, mostra sua vaidade e presunção. (auto – avaliação). O nome da flor, narciso, vem de narke em grego, que significa narcótico, sono, morte. A mão fora d’água (associada à vida) representa uma inversão de papéis ( o que simboliza a vida e o que simboliza a morte = terra árida onde se encontra a mão). Gelo derretendo na montanha = morte. No piso xadrez, um rapaz admira seu próprio corpo, num pedestal. Peça do jogo e jogador solitário. O xadrez mostra luz e sombra, preto e branco, claro e escuro. (vida e morte). O cão à direita rasga um pedaço de carne, carcaça. (morte do que já foi vida). Formigas escalando representam deterioração, decomposição. Nuvens pesadas – novamente a idéia de tragédia, morte. Há divergências de opinião sobre o que se metamorfoseia, se Narciso ou se a mão. Dalí disse que se tratava da morte e petrificação de Narciso. Morte da vaidade, porém com um sentido positivo final, o da vida brotando do ovo.
Obs: Caravaggio, que viveu de 1492 a 1543, fez um “Mito de Narciso” muito apreciado e elogiado por historiadores e admiradores de arte.


Outras obras com espelho:

Rubens – “Toalete de Vênus” (ilustração: enciclopédia Larousse, vol.20, pág.2304).
Pintor flamengo do período barroco (foi um dos primeiros), nascido na Vestfália, hoje parte da Alemanha. Trabalhou para as casas imperiais, para os nobres e era apreciado pela Contra-Reforma. Tinha uma expressividade arrebatada, principalmente nas cenas religiosas. Não eram comuns quadros com nus à sua época e no seu ambiente, pois desagradavam a Igreja. Pintou muitas cenas religiosas e mitológicas. Rubens estudou em Veneza e Roma. Há um sentido decorativo em sua obra. Usava sua segunda esposa, Helene Fourment como modelo. Na “Toalete de Vênus” (a deusa do amor), vemos a mesma após o banho, de costas, nua, a mirar-se ao espelho que lhe é oferecido por um anjo, e à direita uma mulher negra, provavelmente representando a subserviência dos menos favorecidos, paralelamente ao anjo, representação de algo mais sublime. O rosto no espelho não é muito fiel à posição em que se encontra Vênus, pois esta se nos aparece de perfil. Há muita luz na figura da deusa, ao passo que o fundo é muito escuro. Nossos olhos são, no entanto, atraídos para a figura do espelho. O olhar da deusa no espelho não parece dirigido a si própria, mas ao observador do quadro.

Ingres – “Madame de Senonnes” (ilustração: site: www.abcgallery.com/I/ingres.25.html e “Madame de Hausonville”-
( ilustração: Gênios da Pintura, vol. IV)
Jean Dominique Ingres, pintor francês, expoente da tradição clássica, foi aluno de Jacques Louis David, e do Barão de Gros. Excelente retratista, fez essas duas mulheres de costas para o espelho. As mulheres apresentam beleza e perfeição de detalhes. Os ambientes são ricos, há luz, cor e volume em seus retratos. Trazem um olhar enigmático, que remete a romance, sonho ou segredos. O reflexo de suas cabeças no espelho é perfeito. Porém, subjetivamente, podemos observar que, estando de costas para o espelho, não se buscam, não há aqui a tentativa do auto-conhecimento. Elas encaram o espectador, e não a si próprias. Apesar disso, seus olhares nos passam profundidade psicológica e quase que dialogam conosco. Ingres pode ser considerado um repórter da moda de seu tempo, tal a riqueza de detalhes por ele mostradas nas vestimentas de suas retratadas. Percebem-se com clareza os tecidos, suas estampas, e os adornos usados pelas mulheres.
Velásques –“As Meninas” (ilustração: Gênios da Pintura, vol.IV) “Vênus ao Espelho” (Gênios da Pintura, vol.IV) “Cristo em casa de Marta e Maria” (Galeria Delta da Pintura Universal, vol.1).
“As Meninas” - No quadro, vemos Velásquez pintando, espiando de trás de uma tela. O que ele realmente teria que pintar, não fica claro, depende do ponto de vista do observador. Em primeiro plano, vemos a “infanta”, cercada por serviçais. Estas seriam “as meninas”. Mas ele se encontra atrás delas, olhando por cima de suas cabeças, na nossa direção. Ao fundo, num espelho, aparece um casal, que poderia ser o casal real. Estão de frente para a cena. É como se no momento da retratação eles se encontrassem na posição que nós tomamos, como observadores do quadro. Não se tem notícias de que tenha sido feito um quadro desse casal real, assim como aparecem aqui. Portanto, descartamos a possibilidade de que, o que vemos na parede do fundo, ser uma pintura, e não um espelho. No cantinho à direita, vemos um menino e um cachorro, o menino a pisar no cão. Ao fundo, à porta, surge um homem, que os historiadores dizem ter sido o responsável pelas finanças da rainha. É como se ele viesse ver como está o trabalho do artista, e o andamento da encomenda. Da maneira como vemos, podemos pensar que Velásquez quis mostrar mais do que a família real espanhola; mostra também sua posição na corte, a relação entre soberanos e artista contratado. Na verdade, Velásquez toma um lugar mais importante do que o do rei e rainha, aqui. É ele quem tem o destaque. Outro ponto a se observar, é que ele não disfarça a realidade da aparência das personagens, não as faz mais belas do que realmente são. Pinta o que vê refletido no espelho à sua frente. E nós nos colocamos no lugar desse espelho, ao olharmos o quadro. Há focos de luz na porta ao fundo, e nas roupas das meninas. Há referencia à religiosidade na freira por trás das meninas. E, talvez, uma mensagem: a arte se sobrepõe ao poder.
“Vênus ao Espelho” – Velásquez retoma o tema de Rubens e retrata a sua Vênus. Dessa forma, é predecessor de Goya, na “Maja Desnuda”, e de Manet, com sua Olímpia. Seu olhar não é o mesmo que o de Rubens. Também aqui um anjo segura o espelho. As formas físicas são menos exageradas. Vênus se admira, reclinada em um divã. Sua pele é suave, mais ainda se comparada com os tecidos grosseiros. Parece ser noite, pelo que vemos ao fundo. O tom vermelho da cortina trás um toque dramático à cena. A deusa parece feliz com o que vê. Está relaxada e faz uma introspecção tranqüila. Está satisfeita consigo mesma. Seu reflexo ao espelho nos diz isso. É uma obra que sugere tranqüilidade, repouso. Auto-admiração, vaidade, sendo, pois, mais humana, menos deusa. Há pontos de luz nas asas do anjo, fitas, lençóis, mas principalmente, nas costas de Vênus. Não há erotismo ou apelo carnal. Mas poderíamos dizer que há sentimento.
“Cristo em Casa de Marta e Maria” – Aqui a ênfase é em Marta, trabalhando em primeiro plano, quando Maria e Cristo conversam ao fundo. O destaque é para Marta, e não para o filho de Deus. Nós os vemos ao fundo (Maria e Cristo) à direita, refletidos no espelho, como que para dar importância à citação bíblica: “Marta, Marta, Maria ficou com a melhor parte.” E Marta nos olha, como que se dando conta daquilo que Cristo havia lhe dito. A importância de Cristo pode ser considerada no fato de que Ele se encontra duplicado pelo espelho. Apesar de ser uma cena religiosa, há um aconchego doméstico aqui. Velásquez humaniza o fato. Há muita luz nos peixes, (símbolo de Cristo) e no alho. Marta parece contrafeita, enquanto Maria está atenta ao que diz o Cristo. Nada indica um ser divino. Não há auréolas, nada. Há luz entrando à esquerda no alto, através do pano que cobre a cabeça de Marta. Verticalmente, chega-se à luz maior, os peixes, o que faz com que conduzamos nosso olhar ao espelho acima. Ou seja, acima dos símbolos, o próprio Cristo em pessoa. Marta parece observar, não participando da conversa. Há em seu olhar um sentimento de “não pertencimento”.
Suzanne Valadon (impressionista) – “A Boneca Abandonada” (ilustração: www.sindromedeestocolmo.com/fotos/museumulher5.jpg)
Esta pintora posou como modelo para outros impressionistas de seu tempo. (nasc. 1865) Era amiga de Renoir e Degas. Foi amante de Satie, grande compositor da França. O também pintor Maurice Utrillo era filho de Suzanne. Esta sua obra mostra as fases da vida de uma mulher. A menina, com seu laço e a boneca, mostram a infância. Porém, a boneca está abandonada, indicando o fim da infância, a passagem para a vida adulta. Seu corpo já mostra os sinais do amadurecimento. Mas sua nudez é de adolescente, sem erotismo ou malícia. Ela se olha no espelho e fica fascinada com as transformações. Tenta “conhecer-se e reconhecer-se” naquela imagem. O ambiente é familiar, íntimo, caseiro, suave. Sem dúvida uma fase de enormes transformações para a mulher. Entrada no desconhecido, até mesmo seu corpo lhe é ainda desconhecido, por causa das transformações. A boneca renegada trás uma idéia de desencanto, incompreensão. A figura da mãe sugere a maturidade, o olhar atento de mãe, o cuidado e o zelo, tão femininos. O fato de que a menina está de costas para a mãe pode sugerir que se coloca de costas para a passagem do tempo, ainda não aceitando bem esse fato. Nós não vemos o que o espelho diz a ela. Sinal de que ela ainda está se buscando, ainda não se deu o auto-conhecimento. É preciso mais introspecção para que isso aconteça.
Picasso – “Mulher no Espelho” (e mais de 40 variações de “As Meninas”) (ilustração: Gênios da Pintura, vol. VII).
A preocupação do artista, nos últimos anos da década de 20 e nos primeiros anos da de 30, é buscar a unidade entre a aparência e a estrutura (ou essência). Ele dizia que a arte é reveladora. Tudo é uno e múltiplo, visível e invisível, existente e abstrato. E ele consegue juntar numa só tela todo esse conceito. A obra mostra uma mulher se olhando no espelho, com várias formas geométricas a representar seu corpo e o espaço circundante, enquanto vemos sua imagem refletida de maneira distorcida, respondendo bem claramente ao conceito do artista. Ela se busca no espelho, e se observa. Há mais em uma cena do que aparentemente vemos. Picasso fez mais de 40 reinterpretações de “As Meninas” de Velásquez, dando uma forma cubista ao tema. O espelho o perturbava, o inquietava. Há traços da obra anterior, mas tudo é “modernizado”. Assim Picasso via o espelho e seus reflexos. A arte não está presa à cronologia da vida, ela se transforma. A mulher de frente/perfil olha em frente e para o observador, ao mesmo tempo, e o olho refletido não acompanha o olhar “real”. Afinal, ele se questionava sobre o que é na verdade “real”. O que se vê no espelho não corresponde à imagem real. Picasso tinha uma grande ligação com os que o antecederam e era obsessivo quanto à repetição.
Paul Delvaux – “Mulher ao Espelho” ( ilustração: enciclopédia Larousse, vol. 7, pág. 814)
Numa gruta, ao fundo a claridade de sua entrada, cenário externo de terra infértil, deserto, pedras. Há suaves curvas que formam o interior da caverna. À direita, uma jovem nua. À esquerda, um espelho onde ela se vê. Da moldura desse caem duas faixas douradas, rendilhadas, que fluem até o chão. Faixas, fitas, tiras servem para amarrar, atar. Sentir-se-ia essa jovem presa, atada a si própria, ou ao que parece ser seu reflexo? Estaria ela presa a costumes, hábitos, a uma sociedade que ainda coloca a mulher na idade das cavernas? Estará sua alma, de alguma maneira presa? Seu interior a prende? São questões que o quadro nos faz querer responder. Paul Delvaux era belga, cineasta e pintor surrealista onírico como Dali, porém mais suave em seu trabalho. De onde vem a luz que clareia a personagem, se a entrada da caverna está do outro lado? Será do olhar do próprio espectador, que também assim se vê? Não há alegria aí, os sentimentos são de interiorização, de busca.
Vermeer – “A Lição de Música” (ilustração: Livro: “Universos da Arte” de Fayga Ostrower, pg. 200).
Vermeer, pintor holandês de sensibilidade ímpar. Pintava cenas do cotidiano. Aqui vemos uma moça tendo aula de piano, de costas para nós, com o mestre ao lado direito. Logo abaixo uma mesa coberta por uma tapeçaria, um violoncelo ao chão, do lado de uma cadeira. A luz vem das janelas e inunda o quarto, realçando a geometria do piso. Além, na parede vemos o espelho, com a moça nele refletida. O que é estranho, porem, é que a posição de sua cabeça de fora do espelho não corresponde à posição de seu rosto no espelho, onde esse está bastante voltado para o professor. Por trás, não temos essa impressão. Ela “se assiste” enquanto tem a aula. Vermeer usava montar as cenas que reproduziria, com cuidado em relação às cores e a luz. O ponto de luz pode ser a jarra na mesa, os brancos e os amarelos. A mesa fica em primeiro plano à direita, porém a luz da janela à esquerda conduz nosso olhar à cena da aula/piano/moça/professor. Há cheios e vazios, volume e alinhamento em diagonal. Nosso olhar passeia em busca de detalhes. Apesar de ser uma aula de música, há silêncio na cena, e uma impressão de permanência do tempo, da situação.
Van Gogh – “Quarto do Artista em Arles” (ilustração: Gênios da Pintura, vol. VI).
Impossível não colocar esse gênio atormentado aqui. Ele nos busca, quando falamos em arte. O quadro de seu quarto tem um pequeno espelho na parede, que nada reflete. Mas se existia, é porque o artista se dava ao trabalho de olhar-se, de vez em quando. Espelhos vazios possuem mais significado do que se pensa. E no caso de Van Gogh, conhecendo sua história de vida, sua doença, sua incessante busca de luz e cor perfeitas, vemos que o espelho devia muito representar para ele. E se nada reflete, talvez seja pelo fato de que ele não se via, não conseguia se conhecer interiormente, devido aos seus distúrbios mentais. Há vários “duplos”, na cena: 2 cadeiras, duas vasilhas de água, 2 conjuntos de quadros na parede, 2 garrafas, 2 travesseiros, 2 portas. Podemos entender esses duplos como seu anseio por companhia, pois sabemos que o artista era muito solitário. Ansiava pela vinda de seu amigo, Gauguin, que com ele morou por uns tempos. Também poderia retratar a duplicidade de personalidade do autor. Os amarelos fortes simbolizam a luz solar, fixação de Van Gogh. Há 3 pinturas deste quarto. E ele dizia que de suas obras, o quarto era sua preferida. Há uma estranha assimetria na composição. Descobriu-se há alguns anos que o terreno onde ficava a casa, em Arles, era assimétrico.
Manet – “Nana” / “Um Bar no Follies Bergère”
Nana – (ilustração: www.mtholyke.edu/courses/rschwart/hist225....)
Nana está de pé em frente ao espelho, colocando maquiagem. Seu visitante aparece apenas na beirada direita da pintura, mostrando que ele não é a figura mais importante da obra. Ela era uma cortesã, e não se usava pintar cortesãs tendo mais destaque do que cavalheiros. O sofá parece enquadrar o corpo de Nana e leva-nos ao cavalheiro. A luz nos leva a ela, á sua figura. Ela tem um sorriso leve, e está consciente da presença de seu visitante. Seu olhar encontra o nosso. Isso era considerado escandaloso, pela sua posição social. Uma cortesã não deveria olhar as pessoas nos olhos. A bengala do homem sugere um símbolo fálico na pintura. Dar destaque em um quadro especialmente para tal mulher não era coisa que se fizesse, e Manet “quebra as regras”. Manet foi um grande quebrador de regras. Todos sabem que prostituição existe, mas ninguém gosta de ser lembrado do fato. Essa pintura eleva o status da cortesã e reduz o do cavalheiro. O espelho só poderia responder com a verdade. Porém, não nos é permitido vê-la. Talvez ainda falte à moça se conhecer, ou a nós conhecer a alma das pessoas pouco convencionais. Manet, impressionista, pintava pessoas, movimento, o tempo, a vida humana. Usava cores e luz com gosto, chega a vir ao Brasil em 1849, e aqui fica por um tempinho. Chama a natureza brasileira de “a mais bela possível”. Ao vir para o Brasil, no navio, pintou as despensas deste, a mando do comandante, pois era ajudante de camareiro. Dizia que tinha sido sua primeira experiência com tintas. Tinha então 17 anos. Tem um pouco de Brasil em Manet...
Um Bar no Folies Bergère: (ilustração: Gênios da pintura, vol. V).
Há um enquadramento perfeito nessa figura de uma moça, Suzon, amiga do artista, atendente do bar em questão. Podemos imaginar uma linha vertical que corre desde o rosto, descendo até o último botão de sua roupa. Por trás dela vemos no espelho que o bar está cheio, noite de diversão. Vemos os pés de um acrobata, à esquerda no canto superior; esse tipo de atração era comum em tais locais. À esquerda do ombro de Suzon há uma mulher com binóculos, simbolizando o ambiente (ver e ser visto). Porém os tons escuros usados pelo pintor, assim como seu olhar triste, cansado e sua quietude, quase imobilidade, nos revelam certa atitude de tristeza e cansaço do próprio autor da obra, mediante a vida. No meio do entretenimento de outros, a tristeza e solidão da jovem. Refletido no espelho, de costas, seu vulto e o de um senhor. Seria o artista? Pela lógica, o reflexo de Suzon não apareceria nesta posição. Sua pose é diferente da pose da moça que nos olha de frente. Muitas vezes as obras de arte só fazem sentido se olhadas no nível poético. Este homem estaria no lugar que ocupamos, como observadores da obra. Ela poderia estar imaginando a presença desse homem, ou lembrando-se de alguém que ali esteve em outra ocasião, falando com ela. Talvez um amor que a tiraria dali. O reflexo do balcão no espelho divide a cena com perfeição. Há vários pontos de luz tais como os círculos brancos nas colunas, o lustre de cristal, o peito da jovem e seu rosto, o balcão. A luz elétrica começava a se tornar popular, e Manet a registra com encantamento. O tom quente das frutas na fruteira traz um pouco de alegria à cena. Além de seu olhar amortecido, uma referencia ao álcool, também entorpecimento, esquecimento. A garrafa da esquerda trás a assinatura do artista. As duas singelas flores em primeiro plano remetem ao feminino, à delicadeza. A jovem parece dizer: ”este não é o meu lugar”. Estando de costas para o espelho, é como se ela estivesse de costas para si mesma, já que o espelho somos nós, é o auto-conhecimento, a busca por nossa essência. A vida flui no bar; e a moça não participa, é uma espectadora alheia à alegria. Apesar do tema melancólico, há harmonia na composição.
Bonnard – “Nu ao Espelho” (ilustração: www.moma.org/exhibitions/1998/bonnard/paintings/ba1_left.html) ou (Gênios da Pintura, vol. VI)
Pierre Bonnard era amigo de Toulouse-Lautrec e como outros impressionistas, gostava de arte japonesa. Fazia litografia e ilustrações. Pintou muitos nus e outros quadros com espelhos. Tem um olhar emocional, que se reflete nas cores que escolhia para suas obras. Há uma tranqüila intimidade nas cenas que pintou. Tinha um estilo próprio, forte e marcante. Fazia parte de um grupo de artistas chamado “Nabis”. O forte amarelo desse quadro mostra alegria, junto com o laranja, cor quente, como se a cor nascesse da carne e se infiltrasse em toda a atmosfera. Entramos no quadro pelo espelho, é onde a obra capta nosso olhar, nos conduzindo pelo recinto. Há inúmeros objetos na cena, mas não há nenhuma imagem da mulher no espelho. Aliás, há dois espelhos em cena. Não há indícios eróticos no corpo nu. É inocente, ingênuo. Não há tentativa de aperfeiçoar este corpo. Aparece como é. A mulher está totalmente integrada ao ambiente, e sua intimidade nos é exposta pelo artista com delicadeza. Não nos sentimos invasores da intimidade alheia. A arte pura não devassa a vida de ninguém. Sentimentos são preservados aqui.
Menzel – “A Sala da Sacada” (ilustração: Coleção: História Universal da Arte, vol. 3, pg.152) ou (www.artcyclopedia.com/artists/menzel_adolf_von.html).
Adolf von Menzel era um pintor alemão, realista.Viveu de 1815 a 1905. Queria como os outros realistas, ser fiel à configuração do “real”.
Aqui o tema é a própria sala e a luz, que entra pela sacada, com suas portas abertas, sugerindo um mundo lá fora, liberdade, vida, ar. Não há pessoas na sala. O espelho reflete o que não podemos ver. Tomamos conhecimento de um sofá, um quadro. O vento sacode os cortinados, trazendo a legítima sensação de frescor. É um quarto de intimismo luminoso. Os tons das cores são suaves, transmitem tranqüilidade, paz. Dá vontade de aí estar. É convidativo, aconchegante. A textura é perceptível, principalmente se observarmos o tecido da cortina. A luz “faz” a cena. Ao mesmo tempo, a ausência de pessoas nos faz pensar em vazio, “não-ocupação”, ou até mesmo solidão. Um quarto vazio pode ser indicativo de uma alma vazia. Mas não há sentimento triste, ou negativo aqui. É um quarto alegre, e indica uma classe social privilegiada. Por um outro ponto de vista, pode-se ter a impressão de que, na verdade, essa sala é bastante usada, sendo que apenas nesse momento não há ninguém aí... Podem ter acabado de sair...

“Um momento sublime na vida de um ser humano...
O refletir sobre nós próprios... olhar o infinito...
Perceber que na vida, existem momentos e atitudes
Que nos mudam interiormente para sempre...
É como o reflexo de um espelho...
Quando assistimos, ou vivemos algo intenso...
Visualizamos de fora para dentro
E sentimos de dentro para fora”.
(autoria: SCSCoutinho)

(Obs: esse trabalho não tem pretensões acadêmicas nem didáticas; são observações pessoais, que entendi poderiam ser compartilhas com pessoas interessadas no estudo das artes.)