quarta-feira, 25 de agosto de 2010

janelas na arte

JANELAS NA ARTE
Eliana R. da Cunha Miranzi

Janelas são fundamentais numa habitação. Por elas entram o ar que respiramos a luz do sol, os sons vindos do exterior. Através delas podemos lançar nossos olhos aos céus, sonhar... Através delas o ar dos ambientes fechados é trocado, renovado. Por isso, podemos entender que janelas têm o poder de transformação. Indicam receptividade, abertura, acolhimento daquilo que vem de fora, do novo, do desconhecido.
Uma janela aberta é uma fonte de luz natural, por excelência. Fonte de vida, inspiração.
Nossos olhos funcionam como janelas do nosso entendimento, de nossas almas, do que há dentro de nossos corações e mentes. Abertos, buscam sempre mais luz. Fechados, nos fecham para o mundo. Nossos olhos são redondos assim como são as rosáceas de vitrais coloridos das Igrejas Góticas. As janelas-vitrais têm efeito funcional e decorativo. Como ornamento, a arquitetura sempre usa janelas em locais especiais, provocando, como efeito, nossas emoções.
Na língua inglesa, a palavra “window” (janela) vem de antigas línguas escandinavas e significa “vento e olho”. Do francês, temos “fenêtre”, que remete a abertura, fenda. Em espanhol, “ventanas”. Portanto, só a palavra em si nos põe a pensar...
Janelas fechadas simbolizam isolamento, reclusão, opção por “não ver”, não tomar conhecimento do exterior, do mundo lá fora, da vida; dos sons da natureza ou o burburinho das cidades. Também significam não-participação, bloqueio da luz, do calor, da brisa que renova o ar viciado. Além disso, trazem um certo ar de mistério: o que há por trás da janela fechada? O que ela esconde?
Na pintura há muitas janelas em cenas criadas por diferentes artistas. Além de servirem como ponto de entrada da luz no tema do quadro, uma janela permite ao artista, muitas vezes, colocar mais elementos no quadro além dos que já estão “dentro da cena”. Assim, podem mostrar paisagens, o exterior, etc.
Vamos observar alguns quadros com janelas.

ANUNCIAÇÃO – Roger Van der Weyden.(+ou-1400/1464)(Gênios da Pintura, vol.1) Pintor belga,jamais assinou suas obras,sendo ignorado até meados do século XIX, quando estudos feitos em antigos documentos comprovaram sua existência.Foi pintor oficial da cidade de Bruxelas e deixou magnífica obra, que, por desconhecimento era confundida com a obra de Van Eyke.Foi à Itália e transmitiu os segredos da pintura a óleo aos artistas de lá. Muito contribuiu com a arte renascentista. Seus temas eram quase sempre religiosos, apesar de também ter pintado retratos. Em sua Anunciação, há efeitos de luz e sombra, sendo que o vermelho, o preto e o branco predominam. No fundo à esquerda, temos a janela aberta para dar entrada a uma luz generosa, que invade o quarto, iluminando a cena e dando reflexos dourados ao anjo. Este parece flutuar ao lado da virgem, em negro, cabeça inclinada, parecendo estar tentando compreender a mensagem que nesse momento recebe. Tem em suas mãos as sagradas escrituras. Há outra janela a seu lado, vindo daí mais luz. O vermelho da cama e das almofadas no banco traz à cena certa dramaticidade. No canto esquerdo em baixo, vemos um vaso de lírios, símbolo da pureza, e da Virgem. Acima do banco no beiral há duas vasilhas de vidro e duas frutas. Há bastante dourado: na capa do anjo, no lustre, no medalhão acima da cama, na jarra que se encontra ao lado desta. A paisagem que vemos pela janela é pacífica, bela, acolhedora. É uma janela escancarada, que permite entrada e saída. A obra tem caráter religioso, porém mostra a humanidade da Virgem.

Nossa Senhora com o Menino Jesus – Giorgione.(1478/1510) (Gênios da Pintura,vol 2) Pintor italiano da renascença. Sabe-se pouco de sua vida e as informações são incertas. No entanto deixou belíssima obra, entre temas religiosos, mitológicos, paisagens e retratos. Morou em Veneza e trouxe à pintura de sua época um novo conceito de luz e uma nova relação entre a figura humana e a natureza. Esse quadro é do início de sua carreira, e ainda mantem as figuras um tanto rígidas. Isso com o tempo muda e ele passa a desenhar com mais lirismo.Vemos no ambiente uma grande serenidade, com o Menino atento ao que sua mãe lê. A figura da virgem toma toda a parte central da composição, em tons de amarelo, vermelho e azul. A janela tem moldura decorada, e revela no exterior um prédio grande, imponente, com torre alta, céu azul; a luz entra com alegria, fazendo reluzir as figuras humanas no quadro. Há volume na figura de Nossa Senhora, um pouco menos no menino. Serenidade, paz e interesse pelas escrituras, são impressões que nos ocorrem.

Madonna del Garofano (cravo) – Leonardo Da Vinci (1452/1519) (Gênios da Pintura, vol 2) Nascido perto de Florença, foi aprendiz no atelier de Verrocchio. As cidades italianas ferviam em uma época de intensas atividades artísticas. Leonardo, gênio multifacetado, produz esta obra em 1478. É muito feminina e jovem esta Virgem, que vemos tão perfeitamente enquadrada entre as janelas que aparecem por detrás. Recurso técnico, as quatro janelas servem também para embelezar a tela. A paisagem exterior é descompromissada, não realista, quase uma abstração. Mas, a partir das janelas, Leonardo conseguiu uma perspectiva perfeita, além da luminosidade e brilho necessários para fazer uma obra cheia de emoção, sentimento e ternura. A Virgem mostra um cravo ao Menino, que tenta alcançá-lo. Tem os olhos abaixados, o que era comum na retratação das madonas, simbolizando humildade e recato. Temos cores vibrantes nas vestimentas e os cabelos aparecem caprichosamente arrumados, com brilho e leveza. À direita, embaixo, o cantinho é reservado para um elegante vaso de flores, que comumente aparecem junto às virgens renascentistas. Apesar de ter sido considerado inconstante e de muitas de suas obras terem ficado inacabadas, Leonardo presenteou a humanidade com um legado ímpar. Essas janelas mostram uma arquitetura elegante, uma abertura óbvia para o mundo, ar puro, liberdade e visível observação de detalhes.

Nossa Senhora com o Menino – Albrecht Dürer (1471/1528) (Gênios da Pintura,vol2) Artista alemão que viveu em um período de transição entre dois mundos: a arte deixava aos pouquinhos, de ser privilégio da Igreja e nobres e começava a retratar o homem comum e a natureza. Dürer levou o Renascimento para a Alemanha. Fez vários auto-retratos, sendo que o primeiro foi feito quando ainda tinha apenas 13 anos. Artista curioso e hábil dominava várias técnicas de trabalho, como ilustrações, gravuras, além do desenho e pintura. A cena deste quadro mostra a religiosidade do pintor. Nossa Senhora se apresenta bastante humana, em vigília a um Santo Menino adormecido, sendo que o ambiente está repleto de anjos. Vários deles seguram a coroa da Virgem, suspensa no ar. Um pequenino anjo guarda a cabeceira da cama do Menino. Outros espalham incenso. Ao fundo, à esquerda, São José trabalha em sua bancada de marceneiro. A Bíblia Sagrada se encontra do lado direito, junto à Virgem. Próximo, vemos um figo, que pode representar o pecado original, assim como para outras pessoas pode simbolizar as virtudes. E pela janela podemos observar uma pacata vizinhança: algumas casas, uma carroça puxada por cavalo, uma pessoa. Quietude. Silêncio. O Deus Menino dorme. Há muita preocupação com a arquitetura do local. É apenas decorativa, esta janela; não vem luz dali. Somente serve para nos lembrar que há um mundo lá fora. Os focos de luz vêm de onde se coloca o observador, e da parede do fundo. Há também luz no véu que cobre a cabeça de Maria e no menino. As mãos de Maria devem ser destacadas: mãos grandes, gastas, mãos que trabalham...

O Casal Arnolfini – Jan Van Eyck(+ou-1389/1441) (Para Entender a Arte, pág.14), Artista holandês, trabalhou para a corte como pintor e também diplomata, em missões na Espanha e Portugal.Todos os trabalhos que podem ser realmente atribuídos a ele datam de seus 10 últimos anos de vida. Foi um dos maiores artistas de seu tempo, tendo influenciado vários outros, inclusive Dürer e Vermeer. Aperfeiçoou a técnica da pintura a óleo, abrindo novas possibilidades de trabalho. Este quadro retrata o casamento de um banqueiro italiano estabelecido na Bélgica. Serviu como registro das núpcias. A janela à esquerda deixa passar intensa luz e calor ao ambiente. É uma janela elegante, elaborada. A luz reflete nos rostos dos retratados, e se espalha pelo quarto. O casal, belamente trajado, de mãos dadas, sela um compromisso. Acima da cama vemos um espelho que repete a cena... Duplos... O artista deixa sua assinatura acima do espelho. O lustre é rico, porem só há uma vela acesa. Para alguns, representa Deus que tudo vê ou um incentivo à fertilidade. O rosário de cristal na parede representa pureza, devoção e fidelidade. A laranja na janela é um dos símbolos do fruto proibido. A cama é o símbolo de nossa entrada e nossa saída deste mundo. Os sapatos postos de lado indicam que ali estava ocorrendo uma cerimônia religiosa. Estes sapatos de madeira eram do cavalheiro. Os da senhora estão perto da cama, vermelhos. O cãozinho simboliza fidelidade. A noiva não está grávida. É que o ventre era considerado um ponto de beleza. Tudo aqui retrata a riqueza, o status do casal. As cores são intensas, os sombreados magníficos. A preocupação com detalhes é bem típica da pintura flamenga. Esta janela com sua luz fazem o quadro ser o que é.

Cristo em Casa de Marta e Maria – Tintoretto (Jacopo Robusti,seu verdadeiro nome) (1518/1594) (Gênios da Pintura, vol.3) – Nascido em Veneza, sua obra é grande, tendo sido iniciada muito cedo. Foi matriculado pelo pai no atelier de Tiziano,que o expulsou por ciúmes de seu talento. Assim, começou a pintar por conta própria e estudar sozinho. Suas obras contem uma busca espiritual, sendo que a luz e os corpos dos personagens são sua preocupação maior. Seu desenho é cheio de linhas curvas e os temas são religiosos ou mitológicos. Neste quadro, as três figuras em primeiro plano captam nossa atenção pela luz. As outras figuras são menos destacadas, menos detalhadas. Vemos Cristo em conversa com uma mulher, que poderia ser Maria Madalena (Esta tradicionalmente era retratada em vermelho); ao seu lado, Maria. Podemos observar que ou Madalena fala e Cristo ouve, ou Cristo explica algo às mulheres. Porém, pela posição da cabeça de Maria, parece ser Madalena a que fala. Ao fundo, à direita, vemos Marta a cozinhar. Outros estão na sala, são discípulos, assim como provavelmente o dono da casa, Lázaro, amigo de Cristo. Ao fundo, a janela. Bela, cheia de claridade, nos mostra os outros discípulos do lado de fora, á espera do Mestre. Há movimento na cena toda, os personagens se viram, conversam. Há luz vindo da posição do observador do quadro, também, refletindo-se mais intensamente nas três figuras centrais. Na cozinha, situada em um nível mais alto, provavelmente havia outra entrada de luz, ou seria apenas a claridade oferecida pelo fogo? Lázaro era homem de posses, e vemos isso na ambientação. As faces retratadas são doces, belas. Do Cristo emana uma luz especial. A janela pode ser considerada como ligação do externo com o interno, espiritual e mundano, e também parece incluir os outros apóstolos, ou convida-los a fazer parte da reunião.


Moça Lendo uma Carta – O Soldado e a Moça que Ri – A Leiteira – Jan Vermeer (1632/1675) (Gênios da Pintura, vol.4) Quase toda a obra de Vermeer é retratação de cenas domésticas, é feita no interior das casas. Pintor austero em sua técnica,colocava recursos emocionais nos motivos mais corriqueiros. Viveu em época de intensa turbulência política, mas nada disso percebemos em seu trabalho. Seus quadros celebram a paz. Aqui nestas obras observamos certas constantes: recintos fechados, uma janela sempre à esquerda, luz filtrada, olhos da personagem não encaram o observador, há tapetes, cortinas mobiliário destacado, às vezes mapas nas paredes, objetos domésticos simples, mas também vida, vida real. Os ambientes são íntimos, há quietude e paz. Nos dois primeiros quadros citados temos a mesma janela: bonita, com vidros e ferro trabalhado e sua luz generosa. Há detalhes tocantes: o reflexo do rosto da moça que lê a carta, no vidro da janela, a taça de cristal que a jovem segura ao conversar com o soldado, e seu sorriso. Na “Leiteira” a luz que entra no recinto trás um intenso dourado, que a tudo faz brilhar. Mulheres em casa, mulheres no cotidiano doméstico, esse é o tema de Vermeer. O amarelo, o azul e o vermelho são suas cores. Janelas amigas, fartas, abertas, trazem iluminação, alegria e mostram que, apesar das cenas serem internas, o artista tinha conhecimento do mundo lá de fora e não o desprezava, ao contrário, o valorizava.

As Senhoritas Waldegrave – Joshua Reynolds – (1723/1792) (Gênios da Pintura, vol.4) Artista Inglês, grande retratista e fundador da Academia Real, que no início chamou de Sociedade dos Pintores. Muito discreto, mantinha um pesado véu sobre sua vida pessoal. Viajou à Itália e Holanda para estudar. Reynolds viveu no início da Revolução Industrial, quando começa a haver uma classe social endinheirada, que quer seus retratos pintados. Teve enorme obra. Seus retratos diferenciam dos demais pintores, pois não se contenta em apenas retratar pessoas: coloca-as em cenas diferentes, de acordo com suas características: idade, sexo, profissão e posição social. Varia os ambientes em que estão estas pessoas retratadas. Freqüentava ambientes literários e culturais. Dispunha de recursos e tinha em seu estúdio um grande número de auxiliares. Nesse quadro, as moças, sobrinhas de um seu amigo, foram pintadas numa graduação de tons castanhos, com luz vibrante e intenso romantismo. Os traços de fundo e complementos da tela são pouco definidos, mas as moças aparecem com clareza, doçura e feminilidade. A janela fica à direita, por ela vemos o céu e alguma vegetação, assim como a entrada de luz. Mas a claridade principal, ou o foco de luz entra na frente do quadro, na posição do observador. As senhoritas estão a bordar, cuidam das linhas, absortas em seu trabalho e ricamente vestidas e bem penteadas. Tudo mostra a alta classe social a que pertencem. A cortina de veludo está puxada, o mundo lá fora é atingível, e elas aqui estão: há lirismo, poesia, música nessa obra.

O Vagão de Terceira Classe – Honoré Daumier – (1808/1879) (Gênios da Pintura, vol.5) Pintor francês, desde cedo demonstra preocupação com a classe proletária. Foi aluno da Escola de Belas Artes e caricaturista. Perde a visão no fim de sua vida. O escritor Vitor Hugo organiza uma exposição de seus trabalhos, mas não consegue despertar o interesse do público. A pintura e a caricatura foram as armas que usou para lutar contra a desigualdade social e a opressão política. Nesse quadro, a janela é a de um vagão de trem. Ilumina e cumpre bem seu papel de fazer entrar a luz. Mostra a penúria que se repete em gerações diferentes – avó, filha, netos, tristemente retratados em sua viagem no lugar reservado àqueles que não têm meios. Ao fundo, de costas para esta pobre família, Daumier mostra os que viajam em outra classe: As cartolas usadas pela classe mais favorecida, os que viajam na segunda classe, contrastam com as vestimentas rudes e grosseiras da família pobre. De costas, como que para não tomar conhecimento da miséria e sofrimento alheios. O menino dorme, a mãe cuida de seu bebê, e o rosto da velha senhora mostra uma amarga resignação. As pessoas têm os olhos vazios, sem sentimentos. Propositalmente, a luz incide sobre as figuras que o pintor quis destacar. Esse quadro é triste e verdadeiro, nos põe a pensar... É um grito contra a injustiça social.

Almoço no Atelier – Edouard Manet – (1832/1883) (Gênios da Pintura, vol.5)
Pintor que marcou época, desafiou a sociedade, e ficou para a história com sua genialidade. Nessa obra, o filho do artista aparece; é a única vez que pinta seu filho. Manet demorou a casar-se com a mãe de seu filho, pois a moça era protestante e seu pai não o aprovaria. Esperou seu pai morrer para casar-se com sua professora de piano. As aulas durariam 11 anos. Após o casamento, viveu pacatamente em família, e não usava sua mulher como modelo, como faziam vários pintores. Na obra, vemos a janela à esquerda, no alto. Por ela passa uma luz difusa. A luz principal está no menino, pintado com amor e perfeição. É a figura central da cena. Manet concentra nele toda a atenção. Detalhes da refeição aparecem sobre a mesa, servida por uma senhora, que entra com a jarra de prata. As pinceladas bem evidentes já mostram a aproximação do impressionismo. O homem à mesa pode ser o próprio artista, que envia seu olhar ao menino, assim como o faz a mulher. O rapaz tem o olhar perdido, distante. Na ocasião em que pintou essa cena, Manet já era casado com Suzanne. Portanto, é uma cena doméstica, íntima, familiar. O rapaz tem já sinais de entrada na adolescência, e certo ar de desafio.

A Primeira Refeição – Camille Pissarro – (1830/1903) (Gênios da Pintura, vol. 5). Nascido nas Antilhas, tendo estudado em Paris, fica amigo dos impressionistas. Sua técnica do pontilhismo nesta obra nos mostra com doçura a jovem à janela, preparando algo para comer. Está absorvida no que faz e a luz da manhã cai inteira sobre ela. Tem as costas e a cabeça curvadas, o cabelo preso em um coque sendo que há simplicidade em tudo o que vemos. Há pureza aqui nesta obra-prima. O próprio autor disse que jamais pintaria outra tela com tanto cuidado e elaboração. Essa obra nos lembra Vermeer e suas mulheres em cenas domésticas. A janela é generosa, mostra algo da vegetação lá fora, e nos convida a aqui ficar e observar.

Interior com Violino – Henri Matisse – (1869/1954) (Gênios da Pintura, vol.7). Francês, foi advogado, depois decidiu estudar desenho e pintura em Paris. Viajou muito, sempre em busca de maior aprendizado. Sua obra é considerada a expressão mais significativa da arte de vanguarda dos últimos 100 anos. Fez grande número de exposições por todo o mundo. Passou pelas duas grandes guerras, tendo chegado a comprar passagem para vir para o Brasil, onde se refugiaria, no período da segunda guerra. Mas uma conversa com Picasso o faz mudar de idéia; fica na França. Simplificou a pintura, imprimindo alegria e juventude a tudo que fez. Usou cores vivas, brilhantes estendidas em grandes áreas. Fez de tudo um pouco: desenho, pintura, vitrais, cenários e vestuário para ballet, frisos em paredes, esculturas, e gravuras. Matisse colocava janelas em quase todas as suas obras. Nesse quadro que agora observamos, um de seus favoritos, vemos uma cena forte, luminosa, apesar do uso de preto em grande área. A janela, metade aberta, sugere a possibilidade de entrada de mais luz. No exterior vemos uma área azul, que pode ser água ou céu, e um pouco de vegetação. O violino na caixa aberta, em azul e vermelho, sugere música, alegria e arte. À direita, uma bancada em vermelho e amarelo se contrapõe com os outros tons. A luz é tão intensa, que até o preto é luminoso. A cortina da janela está presa dos lados, deixando-a livre. Fica, porem, um certo ar de mistério ou a pergunta: o que mais haveria ali para ser visto?

Violeiro – Almeida Jr. (1850/1899) – (Explicando a Arte Brasileira, pg.83) Artista brasileiro, nascido em Itu, realizou várias obras realistas, com brasileiros e seus costumes. Precede em seus temas os modernistas da semana de 22. Sua janela, aqui, é de uma simplicidade comovente. O violeiro sentado no batente, com sua viola a tocar provavelmente uma toada de amor, é acompanhado pela mulher, que se põe a cantar. Casa de pau a pique, tão brasileira e singela, mas que bem retrata o que é o interior desse nosso país. Ao contrário das outras janelas, esta nós vemos pelo lado de fora; portanto, o efeito de luz aqui não é o que importa, e sim a cena. A luz que faz brilhar o casal vem da direita, e da frente, e o ponto de luz principal está nas calças do violeiro. A observação de fora para dentro nos faz pensar em interiores pobres, porem pacíficos. A escuridão lá dentro trás ao quadro um belo efeito de fundo, contrastando com o exterior iluminado. Tardes quentes, modorrentas na roça...



Várias obras de Maurice Utrillo –(1883/1955)(Gênios da Pintura,vol.7)
Pintor francês, Filho de Suzanne Valadon, que posava para os seus amigos pintores impressionistas, e também pintora. Cresceu junto à avó, menino fraco e esquivo, de inclinações doentias. Começa a pintar por sugestão da mãe, após episódios de alcoolismo. Esteve por várias vezes internado em clínicas psiquiátricas, até 1918. Sua primeira exposição, em Paris, foi um sucesso e assim, passa a trabalhar sob contrato para várias galerias. Apesar de vários pintores retratarem as cidades, Utrillo se destaque, com um olhar diferente sobre as ruas. Transforma seus desenhos em poemas. É modesto em seus temas, e tem em geral um olhar tristonho, como que perdido na contemplação. Descobre lugares poéticos, cantinhos de cidades desconhecidos, sem alarde, com discrição. O ambiente em que viviam Montmartre, era completamente tomado por artistas e boêmios, mas oferecia inspiração e temas a estes artistas. E apesar de ter uma vida tumultuada pelo vício, sem condições financeiras adequadas, e doente, Utrillo nos passa a sensação, através de seus quadros, de uma pessoas que jamais perdeu a ingenuidade e ternura. As janelas de tantas casa e prédios que ele retratou estão sempre fechadas. Ou, quando abertas, nada revelam. São escuras, obscuras. Como olhos fechados, ou cegos. É como se ele dissesse: “conheço a cidade, mas não conheço seus habitantes”. Mas há cor, luz e ritmo musical em suas ruas. Há, também, um convite ao passeio pela cidade. Atiça-nos a vontade de perambular pelas ruas, tentar ver o que ele viu sentir o que sentiu. São encantadoras suas paisagens urbanas, e belíssima sua “Catedral de Chartres”, do estilo gótico.

Diversão com reflexão.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O Método dos Cinco Passos de Stanley Keleman *



Artigo Publicado na Revista Reichiana do
Instituto Sedes Sapientiae, n 15, 2006, p 47-55

Artur Thiago Scarpato**

“A vida diária envolve a criação de diferentes configurações somáticas para lidar com a variedade de mudanças das circunstâncias externas” (KELEMAN, [1987]1995, p 27). Assim começa o segundo capítulo de um dos livros mais importantes de Keleman, “Corporificando a Experiência”. Nesta afirmação podemos ver como o comportamento é visto por Keleman a partir das organizações somáticas, que são inseparáveis das outras esferas da experiência humana. A clássica separação entre as esferas cognitiva, afetiva e motora perde espaço nesta visão integrada. Keleman elege o acesso à organização somática como via privilegiada para se trabalhar com a experiência humana, acreditando através deste trabalho estar articulando todas as camadas da existência.
Keleman ([1979]1994, [1985]1992, [1989]1997, [1999]2001) propõe olhar a vida a partir do processo formativo, um processo de contínua criação de formas somáticas, uma anatomia do desenvolvimento que nunca pára e atravessa toda a vida. O processo formativo está afinado com o mesmo princípio que move o processo evolutivo das espécies, uma capacidade de criação de formas e estratégias para a ampliação da função vida.
A perspectiva formativa aponta que a vida é movida pelos processos de diferenciação, crescimento e complexificação em direção ao futuro, criando novas formas somáticas e comportamentos para dar conta dos desafios que a vida apresenta. Este processo depende da interação constante entre forças biológicas, ambiente e subjetividade.
(pág 48**)As formas somáticas manifestam a passagem da motilidade à mobilidade, da pulsação ao movimento: “Sabe-se que o cérebro converte excitação em comportamento, direcionando-a ou evocando certos comportamentos passados” (KELEMAN, [1987]1995, p 86). Este processo que vai da excitação à ação contém etapas, e sob influência de Nina Bull (1962, 1968), Keleman vai elaborar a sua fórmula do comportamento em três tempos: “Em primeiro lugar, há um padrão organísmico geneticamente herdado, depois uma preparação para a ação e, finalmente, a ação propriamente dita” (KELEMAN, [1979]1994, p 38).
Os comportamentos se iniciam a partir de padrões inatos, um repertório evolutivo que manifesta os caminhos seguidos pela vida e que oferece direções de comportamentos futuros. Há padrões inatos de emoções como tristeza, raiva, alegria e medo, assim como há padrões inatos de ações como buscar, agarrar, trazer, empurrar, esperar, receber e dar (KELEMAN, [1985]1992, [1994]1996, [1996]1996). Estes padrões inatos oferecem as trilhas básicas a serem percorridas pelas marés pulsatórias na formação contínua do organismo.
A partir dos padrões inatos, organizam-se os padrões secundários, um momento intermediário de pré-organização do comportamento, que Keleman denomina como forma somática (KELEMAN, [1975]1996; [1979]1994). Este padrão secundário pode ser moldado e influenciado pelas ocorrências do desenvolvimento, como as experiências vinculares e a educação, assim como também pode ser influenciado volitivamente.
A raiva, por exemplo, pode ser expresso sob a forma explosiva de um grito, com uma voz moderadamente dura ou apenas com um olhar de desaprovação. São diferentes graus da forma somática modulando o padrão da emoção.
Há um intervalo entre a afetação de um encontro e a consequente ação no mundo. Neste intervalo se organizam as formas somáticas, preparando comportamentos e atitudes com suas diversas manifestações cognitivas e afetivas. Neste processo podemos ir além do pré-programado e entrar num campo potencial, mais indeterminado, que permite a modulação e a criação de “respostas do self antes inexistentes” (KELEMAN, [1989]1997, p 13), um processo que já havia sido apontado por Bergson ([1939]1990, [1941]2001).
Impulsionadas pelas marés pulsatórias e pelos padrões inatos, as formas somáticas vão se singularizando em cada organismo humano, se construindo na interação com as forças sociais, com os eventos da existência e vão se refinando com as regulações subjetivas que participam deste processo complexo de construção da vida. As formas (pág 49) somáticas emergem das experiências do organismo no mundo, como modos de organizar a experiência interna e preparar respostas aos desafios que se apresentam.
O terceiro tempo do comportamento, a ação, emerge deste processo complexo de construção e autodiálogo do organismo em suas interações na vida.

Padrões de Distresse: Limitações ao Processo Formativo

Se por um lado a forma somática pode expressar a pulsação interna, por outro pode restringi-la e determiná-la. Quando as formas se estabilizam, podem moldar e limitar as possibilidades de pulsação e vida emocional. Por exemplo, uma forma somática com o peito cronicamente inflado e duro, cabeça erguida, pernas tensas e abdome contraído pode levar a estados constantes de orgulho e superioridade, ao mesmo tempo que impede a vivência de outros estados afetivos, como experiências suaves e ternas. Como diz Luce (1975, p 16): “Nossa experiência desenvolve estrutura e a nossa estrutura limita a nossa experiência”.
Ao longo da vida as formas somáticas vão se estabilizando por dois processos: por uma estabilização progressiva decorrente da repetição de experiências vinculares e por uma cristalização devido a experiências excessivas ou traumáticas
Toda situação vivida gera excitação e forma. Algumas vezes a excitação ultrapassa o limiar de tolerância, disparando alterações emergenciais das formas somáticas que visam limitar os efeitos devastadores do excessivo (KELEMAN, [1985]1992; SCARPATO, 2001a). Nestas situações, as principais respostas de alteração dos tecidos do corpo são: (1) enrijecer para controlar as próprias reações, (2) densificar para isolar a excitação, (3) inflar para diluir ou vazar a excitação no ambiente, ou (4) colapsar, diminuindo a pulsação.
Em situações normais, o organismo lança mão de alguma destas respostas de proteção frente a um desafio intenso, voltando ao seu estado habitual de pulsação e forma após um certo tempo. Porém, em situações extremas, pode haver uma paralisação do organismo num dos quatro padrões de distresse: rígido, denso, inflado e colapsado (KELEMAN, [1985]1992, [1989]1997).
Os padrões de distresse paralisam o processo formativo, impedindo a criação de novas respostas e comportamentos para lidar com as diferentes situações. Este é o momento de se intervir na clínica, pois “a patologia começa quando há uma incapacidade para desorganizar uma forma” (KELEMAN, [1996]1996, p 122).
(pág 50)
O Autogerenciamentoem Cinco Passos
O intervalo de tempo entre a pré-organização de um comportamento e o seu ato expressivo permite a percepção do que se sente, a sensação do “ser movido” internamente. Este intervalo permite ativar um processo de autogerenciamento, onde é possível identificar e modular as próprias formas somáticas, participando ativamente da construção da própria existência (KELEMAN, [1987]1995; SCARPATO, 2005).
O sentido de autogerenciamento em Keleman está longe de ser uma proposta de autocontrole, mas em saber dialogar com a experiência interna e com as forças que nos ultrapassam e nos movem, de modo a desenvolver uma capacidade de reconhecer e influenciar estes processos.
Para desenvolver um bom autodiálogo é necessário encontrar uma linguagem que se aproxime da experiência. A proposta kelemaniana é encontrar esta linguagem na qual a experiência se organiza, uma linguagem não analítica, atenta às modulações de pressão, tensão e excitação, próxima da organização somática da experiência subjetiva. Nas palavras de Keleman ([1987]1995, p 37): “o processo do COMO imita nosso modo natural de funcionar. Ao enfatizar padrões internos de apertar, pressionar, relaxar, adquirimos conhecimento sobre excitação, estímulo e sentimentos”.
Agir sobre o processo organizador da experiência implica em agir sobre os padrões de ação e movimento, pois em última instância “o self é uma organização progressiva de contínuas ações musculares chamados padrões motores” (KELEMAN, [1987]1995, p 42). Pela ação modulatória sobre as próprias formas somáticas nos tornamos capazes de reconhecer com mais clareza nossas respostas e influir sobre as nossas experiências subjetivas e nosso comportamento. Como diz Keleman ([1994]1996, p 57), “o cérebro volitivo tem uma influência sobre nossas posturas sociais e nossos padrões instintivos de re-produção. A prática do Como faz uso dessa função inata, que é uma parte essencial do nosso autogerenciamento”.
O pensamento kelemaniano volta-se para o “como” os comportamentos se organizam e não apenas para as suas causas ou finalidades. O processo do Como pode ser diferenciado em cinco etapas, o que leva Keleman a denominar este trabalho de Método dos Cinco Passos (KELEMAN, [1987]1995).
O Método dos Cinco Passos permite o reconhecimento, a desorganização e a reorganização das atitudes somático-emocionais. É um modo de influenciar e transformar a organização somática dos sentimentos, crenças, pensamentos e comportamentos; um método para se trabalhar com as (pág 51) experiências subjetivas organizadas somaticamente (KELEMAN, [1987]1995, [1989]1997, [1994]1996, [1996]1996, 2005).
Nas palavras de Keleman ([1979]1994, p 40), os Cinco Passos são “um exercício, um auto-treinamento no processo de reconhecer que palavras e imagens estão conectadas a padrões musculares, confirmar que o corpo fala e perceber que a fantasia é uma preparação para a ação”.

No Método dos Cinco Passos temos:
Passo 1 - imagem ou situação a ser trabalhada
Passo 2 - discriminação e intensificação da organização somática, o que permite o reconhecimento dos esboços de ação organizados, dos afetos e estados cognitivos. Permite a identificação dos padrões de ação e vínculo.
Passo 3 - desorganização volitiva e gradual da forma somática
Passo 4 - receptividade aos efeitos da desorganização, deixando surgir outros lados da experiência que estavam impedidos pela forma somática, como sentimentos, lembranças, imagens, etc.
Passo 5 – momento das respostas a partir da experiência dos passos anteriores, podendo surgir diferenciações da forma ou a volta aos padrões conhecidos.

a) Do Passo Um ao Passo Dois
O Passo Um é o início, a escolha da questão que vai ser trabalhada, de se acessar a história, as lembranças e os afetos relacionados à situação.
Quando a pessoa se imagina numa situação, emergem respostas automáticas em seu corpo, há uma passagem da imagem à organização muscular. Esta transição demanda um direcionamento da atenção para o corpo, para observar a forma somática se organizando. É necessária uma atitude de atenção receptiva, que procura acolher a emergência da forma somática.
Na passagem para o Passo Dois há uma ampliação, da imagem mental à imagem orgânica, à forma somaticamente organizada. As perguntas a se fazer são: Como eu faço isto somaticamente? Como eu me uso para fazer isto?
Na passagem do Passo Um para o Passo Dois há a integração da forma somática com o contexto vivencial. A pessoa não apenas se percebe vivendo uma situação, mas identifica como se organiza somaticamente para lidar com a situação vivida. As formas somáticas são sempre contextualizadas com o ambiente, os vínculos e a história de vida (KELEMAN, [1989]1997, SCARPATO, 2001b).
A partir da discriminação da forma somática, inicia-se um processo mais ativo de intensificação volitiva da organização da forma, um fazer mais o que o corpo já está fazendo. Neste momento podem emergir imagens (pág 52) mentais, pensamentos, verbalizações internas e sentimentos relacionados à forma somática organizada. Há uma ampliação, da experiência somática aos concomitantes afetivos e cognitivos.
No Passo Dois “começamos a ter uma experiência direta de como organizamos nossa expressão inconsciente” (KELEMAN, [1994]1996, p 57), começamos a perceber como projetamos o passado sobre o presente, em que lugar colocamos os outros e a nossa atitude frente ao mundo.
A percepção discriminada das formas somática permite o reconhecimento dos esboços motores de ação, a dimensão intencional ainda não realizada do comportamento. Como diz Keleman ([1987]1995, p 25), as “contrações musculares são o diálogo que constrói a imagem das intenções”.

b) Do Passo Dois ao Passo Três
A intensificação da forma somática no Passo Dois propicia uma discriminação mais apurada de como esta é organizada, um fator importante para se saber como desorganizar a forma no Passo Três.
A sanfona é um instrumento musical que produz sons a partir das diferentes modulações de tensão e pressão interna. A imagem da sanfona é a metáfora escolhida por Keleman ([1987]1995) para se referir ao processo organizador e às possibilidades de influenciá-lo.
Os Passos Dois e Três são a essência da sanfona, o momento de intensificar e desintensificar a forma somática, fazer mais e fazer menos. Estes dois passos “visam dramatizar a experiência do nosso corpo oculto, emocional” (KELEMAN, [1994]1996, p 57).
No terceiro passo, “desorganizamos a postura contraída pouco a pouco, passo a passo. Esse fazer menos não significa ‘soltar’ ou ‘relaxar’. A desorganização é um ato gerenciado, volitivo; é para ser experienciado” (KELEMAN, [1994]1996, p 57).
Desorganizar a forma gradativamente torna possível experimentar os diversos graus da forma, percebendo o continuum da organização do comportamento.

c) Do Passo Três ao Passo Quatro
As formas somáticas estabilizadas moldam as possibilidades da experiência, sustentam modos de presença no mundo, com padrões de sentir e perceber a si mesmo e ao mundo. Desorganizar a forma é abrir-se a novas experiências, abrir as portas para novas associações, lembranças, sensações e sentimentos que estavam limitados pelos padrões de organização anteriores.
O quarto passo é o momento de recepção, de acolher os efeitos da desorganização dos padrões de ação, uma situação em que tempo e espaço (pág 53) estão dilatados, em que a ação cede terreno à receptividade, em que “o inconsciente torna-se mais consciente” (KELEMAN, [1987]1995, p 62).
No Passo Quatro “você está entre o que acabou e o que ainda não chegou, num espaço fecundo” (KELEMAN, [1987]1995, p 29).
O Quarto Passo é também o momento de incubação, em que podem brotar imagens de caminhos futuros, sonhos e possibilidades.
d) Do Passo Quatro ao Passo Cinco
Do estado de abertura do quarto passo, chega a hora de retornar ao mundo, o momento do quinto passo.
Na passagem do Passo Quatro para o Passo Cinco, “sentimentos e sensações internas predominam, as cenas e os símbolos se reduzem, e insights e imagens confluem como padrões de ação motora. Esse hiato organiza novas respostas às situações” (KELEMAN, [1987]1995, p 29).
No Quinto Passo pode-se organizar uma nova forma com diferenciações em relação às formas e padrões anteriores, ou pode-se retornar ao padrão anterior conhecido.
A seqüência toda dos Cinco Passos precisa ser praticada e repetida, para se aprofundar a experiência e permitir a desconstrução e reconstrução somática dos modos de presença no mundo.

Funções e Aplicações do Método dos Cinco Passos

O Método dos Cinco Passos permite “conectar padrões musculares a estados emocionais, a imagens e a pensamentos que os acompanham” (KELEMAN, [1989]1997, p 66). O Método permite realizar uma integração entre as experiências cognitivas, afetivas, cinestésicas e proprioceptivas, unindo as diferentes camadas do organismo.
Nos Cinco Passos “desenvolvemos a habilidade de afetar o que fizemos inconscientemente” ativando um “diálogo interno entre corpo inconsciente e corpo consciente” (KELEMAN, [1994]1996, p 57)
.
“Pensamos em memória como uma coleção de imagens, situações e emoções, uma espécie de holograma do evento. Para produzir esta experiência holográfica evocamos um padrão muscular antigo, juntamente com suas associações emocionais. Ao re-experimentar esses padrões e associações, produzimos imagens internas para representar o evento. Esta ação de evocar é memória motora” (KELEMAN, [1987]1995, p 42)
.
No manejo dos Cinco Passos trabalhamos com a história vivida somaticamente, com todos os acontecimentos, padrões de distresse, padrões de ação e vinculação. Trabalhar com as formas somáticas é (pág 54) trabalhar com as memórias motoras do vivido. Ao reorganizarmos as formas somáticas, abrimos possibilidades de criação e diferenciação para a continuidade do processo formativo.
O Método dos Cinco Passos traz uma contribuição importante para a área da Psicologia ao propor um caminho de transformação que vai além da catarse e do insight. Nem sempre há uma reorganização para um estado melhor após uma catarse; do mesmo modo, o insight pode ser insuficiente para produzir mudanças, por não permitir um aprendizado sobre a própria organização do comportamento (KELEMAN, [1987]1995). O Método dos Cinco Passos permite reconhecer a organização somática dos padrões de comportamento, desorganizar seus limites, acessar aspectos profundos da experiência subjetiva, acompanhar as formas emergentes e repeti-las ativamente para a criação de novos padrões.
O Método dos Cinco Passos constitui, ao mesmo tempo, um método de investigação e um método de transformação. Suas aplicações podem ser múltiplas, podendo ser utilizado em psicoterapia, em supervisão, em pesquisa e como um instrumento de autogerenciamento ao longo da vida.
Referências
Bergson, Henri (1939/1990) Matéria e Memória, São Paulo, Martins Fontes
____________ (1941/2001) A Evolução Criadora, Lisboa, Edições 70
Bull, Nina (1962). The Body and Its Mind. New York, Las Americas

Sonhos e o Corpo


por Stanley Keleman
O escritor argentino Jorge Luis Borges tem um conto sobre um homem que desejava ter um filho. O homem começou a sua criação sonhando este filho parte a parte, por um período de muitas noites. Ao terminar, ele rezou para que o deus do fogo conferisse vida ao filho sonhado. O conto termina quando o sonhador descobre que ele próprio, assim como a sua criação, é também uma criação de algum sonhador.
O conto de Borges nos proporciona insight sobre o papel do sonho no processo pelo qual o corpo forma imagens. Os sonhos formam imagens e lhes dão seqüência em uma narrativa. O processo de sonhar conecta o corpo que nós somos com o corpo que nós estamos nos tornando. Os sonhos são uma maneira de o corpo manter uma relação continuada entre, de um lado, o corpo herdado e seu cérebro profundo e, de outro, o corpo pessoal do córtex ou cérebro novo. Os sonhos são, então, parte da realidade da vida do corpo.
Os sonhos mostram aquilo que está se formando mas ainda não está totalmente realizado. Ao crescer e formar sua identidade somática, o corpo fala consigo mesmo em muitas linguagens. Uma delas é o sonho. O corpo enquanto processo está sempre formando imagens e sonhando a sua próxima forma e como encarná-la. Borges, o sonhador, representa a nós todos, sonhando os corpos que nós somos e os corpos que nós seremos.
O seu conto também nos fala de experiência interna, de como sonho e estado de vigília são os dois lados do processo de corpar. Sonhar e a nossa capacidade de acessar o sonhar demonstram a relação que nós temos com nós mesmos. Desta maneira aprendemos sobre a diferença e a semelhança entre o self noturno e o self diurno, aprendemos como o desejo e a imagem estão interconectados.
Há uma continuidade entre o processo do corpo e a imagem do sonho. O corpo inconsciente apela para o córtex em busca de imagens de si mesmo. O cérebro acordado apela para o seu próprio corpo para animar suas imagens. Em Borges, o sonhador ao desejar um companheiro escreve não somente sobre um filho literal, mas sobre um irmão/filho interno. O seu tema faz um paralelo com a história cristã da ressurreição - Deus envia seu filho - e também um paralelo com a história de Golem dos hebreus - o gerar de um ser à semelhança da criatura humana. O tema da auto-geração a partir de si mesmo é também parte da teoria da complexidade - o pensamento mais recente sobre a teoria da evolução.
Estas histórias têm um tema em comum: a relação entre o córtex volitivo da vigília e os centros reflexo e emocional do cérebro. O cérebro faz uma imagem do corpo e depois pede ao corpo que a anime. O conto de Borges aprofunda o tema da participação humana na elaboração das formas da nossa existência, da juventude à idade adulta, à maturidade, à velhice.
Podemos aprender com os sonhos porque podemos reorganizar significado e associação, bem como influenciar a nossa estrutura somático-emocional. Os sonhos possuem uma matriz emocional. Os personagens e objetos do sonho estão embutidos nesta matriz. Apesar de nós tentarmos decodificar as imagens e representações do sonho, nós não aprendemos a vivenciá-las como um ambiente interno ou a vê-las como expressões de um estado corporal. Sonhos são parte do mistério da sabedoria somática, parte do processo do soma tornar-se ciente de si mesmo, de ter uma subjetividade. À medida em que o corpo faz crescer sua própria subjetividade, o córtex forma imagens e expressões motoras que correspondam a esta subjetividade. Quando o corpo sonha, ele usa a habilidade cortical do soma de figurar ou futurizar, para influenciar a sua maneira de estar presente.
Dois aspectos do nosso processo corporal, o herdado e o socialmente vivenciado, organizam e formam um domínio subjetivo intermediário. Esta relação complexa gera uma forma viva em si, influenciando as formas externa e interna. A nossa vida corporal é o seu próprio sujeito; o vivenciar da própria experiência torna-a uma experiência
pessoal. O nosso corpo é o sujeito do seu próprio viver, o corpo é a fonte e a referência do viver. O corpo enquanto processo tem uma relação essencial consigo mesmo. Sonhar é ser íntimo de si mesmo.
As imagens do sonho são como fotos momentâneas de um continuum incessante, porém não-linear, de formas corporais, de expressões, de sentimentos e gestos. O cérebro profundo herdado continuamente tatua sua imagem no córtex cerebral receptivo e dinâmico. Assim como a pele, sua parente próxima, o cérebro também recebe e absorve padrões corporais. As pulsações corporais, o sonho sendo uma delas, aprofundam a relação do corpo consigo mesmo via osmose e influências volitivas. Desta maneira, as pulsações dão forma à identidade pessoal.
O sonho é a atividade somática falando sobre si mesma enquanto se prepara para o mundo da vigília. O corpo instintivo e as formas somáticas pessoal e social conversam umas com as outras. Algumas pessoas sonham com o homem ou a mulher selvagem apesar de viverem como cidadãos sociais adequados. Cada self exerce uma influência sobre o mesencéfalo, sobre o córtex, num diálogo interno. O corpo é um continuum responsivo excitável e contrátil, capaz de transformar a própria forma.Os sonhos, como o coração, estão continuamente mudando de forma, uma pulsação que varia de estável a menos estável, e a estável novamente. Estas pulsações celulares aprofundam a amplitude de metabolismo tissular e de expressão emocional. O sonho, o qual é organizado a partir da pulsação do corpo, ajuda a dar ao soma uma estrutura pessoal e um senso de presença.
O método de trabalho com o sonho consiste em conectá-lo mais completamente à sua própria fonte, o corpo. Nesta abordagem o foco se faz sobre a experiência somática, não sobre significado e interpretação. Os sonhos organizam a maneira como usamos nossos corpos para estarmos no mundo, e como habitamos o corpo em que vivemos. Usamos os sonhos para fazer crescer uma realidade somática e uma subjetividade complexa que abarca múltiplas realidades.
Ao trabalhar somaticamente com o sonho, peço às pessoas para contar seus sonhos de trás para frente e vice-versa, para que elas experimentem uma realidade não linear. Através de um ir e vir entre as diferentes formas somáticas de forma lenta e controlada, engajamos os padrões musculares do córtex e do tronco cerebral. Começamos a nos tornar íntimos da maneira pela qual vivenciamos o corpo herdado e as imagens do corpo no cérebro. Esta abordagem gera sentimentos e memórias associados ao crescimento do nosso corpo pessoal.
Trabalhando com o sonho, desacelerando suas seqüências e corporificando as personagens em posturas estáticas sucessivas - suas expressões corporais e gestos - vivificamos sentimentos e imaginação. Contar o sonho do começo para o fim e do fim para o começo intensifica as personagens e estabelece a relação entre os diferentes corpos. O aspecto relacional das nossas formas somáticas internas e externas confere um aspecto subjetivo à nossa vida corporal. O trabalho somático com o sonho traz o processo corpante para o mundo cotidiano do trabalho, do amor e das relações.
A prática deste trabalho tem cinco passos:
Passo 1 -> Recordar o sonho, em linguagem e em experiência corporal ou cerebral.
Passo 2 -> Intensificar somaticamente as personagens do sonho, tornando sua estrutura e suas expressões mais manifestas através de um processo neuro-muscular de intensificação e diferenciação.
Passo 3 -> Usar as funções cortical e volitiva para controlar o processo de desmontar a estrutura somática das personagens. Os Passos 2 e 3 proporcionam uma experiência fundamental para todo processo somático, o organizar e desorganizar das seqüências de comportamento.
Passo 4 -> O soma é desafiado a conter o que lhe foi tornado disponível pelo sonhar, o fluxo constante de sentimentos e forma que se reestruturam e começam a incubar uma subjetividade.
Passo 5 -> Nós nos re-corpamos, damos forma aos sentimentos, reencarnamos a nossa identidade somática e pessoal.
Sonhos conferem à existência do nosso soma uma subjetividade. O trabalho somático proporciona ao soma uma narrativa e um processo através dos quais este cresce seu próprio destino: nascer, fazer-se presente, morrer. O significado desta realização espelha a nossa concepção do que é imortal.
tradução: Leila Cohn
Stanley Keleman, vem exercendo e desenvolvendo a psicologia somática por
mais de trinta anos. Ele mora em Berkeley, California, onde mantém
uma clínica privada e trabalha com grupos no Center for Energetic Studies,
do qual é diretor. Ele é autor de Anatomia Emocional e Corporificando
a Experiência entre outras publicações.

Center for Energetic Studies
2045 Francisco ST.
Berkeley, CA 94709
Tel: (510) 845-8373

segunda-feira, 16 de agosto de 2010


MITOS METÁFORAS, LINGUAGEM ARQUETÍPICA

Joseph Campbell-The mythic dimension-collected works of JosephCampbell

por Adriana Ferreira

A vida de uma mitologia vem da vitalidade de seus símbolos como metáforas transmissoras, não apenas da idéia, mas de um senso de participação real nessa realização de transcendência, infinidade e abundancia.

Na verdade, o primeiro e mais essencial serviço de uma mitologia é este, o de abrir a mente e o coração à maravilha total de todo ser.

O segundo serviço é cosmológico: representar o universo e todo o espetáculo da natureza, tanto como o conhece a mente, como o vê o olho- como uma epifania, e diante de toda maravilha acontece um reconhecimento da divindidade.

As idéias elementares- (Bastian)- ou os arquétipos do inconsciente coletivo- (Jung)-, são ao mesmo tempo as forças motoras e as referências conotadas por meio das figuras metafóricas, historicamente condicionadas das mitologias por todo o mundo; são como as leis do espaço inalteradas pelas mudanças de localização.

As transformações da mente e da visão, necessárias ao reconhecimento de todas as coisas dessa maneira, como epifanias do êxtase do ser, são definidas e discutidas em termos dos princípios da estética.

Pois é o artista que torna manifesta as imagens de uma mitologia; além disso, é a maneira própria de ver das artes, que permite às coisas se destacarem e serem vistas simplesmente como são, e não como coisas desejáveis ou temíveis, mas como afirmações, cada qual a seu modo, do ser natural.

À maneira de ver da arte, as características de um ambiente, se tornam transparentes, objetos de uso essencial adquirem significação simbólica.

Todo o mundo conhecido é sentido, assim como uma maravilha estética.

A função social da mitologia é a de unir um povo local em apoio mútuo, oferecendo imagens que despertam o coração ao reconhecimento da comunalidade, protegendo o limite monádico.

Estas mitologias locais são condicionadas pela geografia local e pelas necessidades sociais. Suas imagens provêm das paisagens, da flora e da fauna locais, de recordações de personagens e acontecimentos de experiências visionárias comuns.

A definição de mônada se deu a partir da posição psicológica adotada pelo povo em relação ao seu universo.

De acordo com Bastian, essas mônadas são organizações locais do número de idéias étnicas, ou populares das culturas representadas, estruturando de maneiras variadas em relação às necessidades e interesses existentes, as energias e impulsos primordiais da espécie humana comum: bionergias que são a essência da própria vida e que, quando descontroladas, tornam-se terríveis, horríveis e destrutivas.

Ofício da arte

O ofício liga o artista ao mundo. Ele é o mestre da linguagem metafórica, sendo criativo só quando é inovador, sendo a visão inovadora superior às inovações técnicas.

Sendo a natureza do artista e a natureza do universo dois aspectos da mesma realidade, explicita de forma clara a integração criativa da descoberta e do reconhecimento que alerta o artista para a possibilidade de uma composição reveladora, na qual as realidades interiores e exteriores são vistas como a mesma coisa.

Há um grau possível de revelação através da arte, que esta além da beleza, ou seja, o sublime, que foi definido como “aquilo que desperta sentimentos de temor e de reverência, e um senso da vastidão e força que escapam à compreensão humana”.

“E considerando a arte desta perspectiva, o próprio Nietzsche declarou:” a arte é a tarefa adequada da vida, a arte é o exercício metafísico da vida... a arte é mais do que a verdade”

O artista é, portanto o verdadeiro vidente e profeta de seu século, um revolucionário muito mais fundamental em sua penetração da máscara social de sua época do que qualquer idealista fanático.

Em se falando de vidência há uma célebre frase de Strindberg que disse certa vez: “os políticos são gatos de um olho” o olho direito ou o esquerdo. Fecha-se um, abre-se o outro.

“O artista, porém, diz Campbell, vê com os dois olhos, e só a ele é o centro revelado: aquele ponto imóvel como viu Eliot, onde está a dança”

“E há apenas a dança’

A DANÇA.

Pina Bausch: Citações do livro de Fabio Cypriano: PINA BAUSH

“Há instantes, porém, em que perdemos totalmente a fala, em que ficamos totalmente pasmos e perplexos, sem saber para onde ir”. É ai que tem inicio a dança.

...é preciso encontrar uma linguagem com palavras, com imagens, movimentos, estados de ânimo, que faça pressentir algo que está sempre presente. Esse é um saber bastante precioso.

Nossos sentimentos são todos muito precisos, mas é um processo muito, muito difícil torná-los visíveis. Sempre tenho a impressão de que é algo com que se deve lidar com muito cuidado. Se eles forem nomeados muito rápidos com palavras, desaparecem ou se tornam banais. Mas mesmo assim é um saber preciso que todos temos, e a dança e a música, são uma linguagem bem exata, com que se pode fazer pressentir esse saber. Não se trata de arte, tampouco de mero talento. Trata-se da vida e, portanto de encontrar uma linguagem para a vida. “E como sempre se trata do que ainda não é arte, mas daquilo que talvez possa se tornar arte”.

A ARTE DE COMO VER E COMO CRIAR SUA PROPRIA DANÇA OU...

Como assistir:

“pode-se assistir a uma peça por tantos lados, não há um caminho: assista assim ou dessa forma. Deve-se estar livre, e confiar em si próprio, no que se está sentindo quando se vê a peça. E quando se vê mais vezes, ela muda da mesma forma que mudamos nossos sentimentos, e isso se reflete na visão.

... Uma peça deve ser tão aberta para mim quanto para os outros, para que cada um possa construir sua própria pele nela”

A questão é “do que o mundo precisa hoje, do que precisamos”

GEORGE STEINER – Colagens feitas de textos de seu livro Grammars of creation.(1929)

Uma arte combinatória aponta para a invenção e a reinvenção. Nossa existência e nossa consciência são lançadas na linguagem. Não é uma linguagem que tenhamos escolhido.

A linguagem, portanto, está tão permeada de seu passado cumulativo quanto de seu presente multifacetado, em todas as suas variáveis fisiológicas, temporais e sociais.

Qualquer ato e qualquer dado que envolvam a fala humana, são atos que aspiram a serem ouvidos, a persuadir e a envolver, conscientemente ou não.

O puramente semântico nos conduz ao semiótico e à fenomenologia abrangente que define a produção e a comunicação do sentido.

Assim, bem antes que decida abandonar sua própria estrutura para “dançar seu sentido”, a linguagem é radicalmente coreográfica e multimídica.

Quantas representações essencialmente novas e inéditas e quantos novos movimentos do inteligível conseguiram adicionar ao repertorio já existente?

O que criamos, o que agregamos de realmente novo em relação à tristeza de Heitor por Andrômaca, à fúria de Moisés, ou ao amor ferido de David por Jônatas?

O ruído de fundo da presença inteligível mesmo nos sinais mais arcaicos permanece tão vívido quanto o clarão de um farol num horizonte longínquo.

Pesquisadores de mitos e contos sustentam que as células originárias de todas as narrativas que estudam, sejam as da epopéia oral, do drama ou da futura ficção em prosa, são identificáveis e restritas em número.

As duas questões básicas são:

- Qual é a fonte destas figuras primais, e como são transmitidas ao longo do tempo?

A antropologia estrutural de Lévi-Strauss, procura estabelecer uma lógica dos mitos. (mitologia)

Os contos contados e recontados por todo o planeta, mesmo que com variações locais, espelham as constantes biológicas e sócias da espécie humana.

São narrativas que formalizam uma imagem instintiva e os processos cerebrais comuns à humanidade e que, mais especificamente, capacitam a mente humana a conviver e reagir a provocações e contradições insolúveis como as do tabu do incesto, as de nossas relações ambíguas com o meio natural e animal ou com a inelutabilidade da morte.

O corpo e o sistema nervoso moderno continuam a habitar e a deparar com imperativos primordiais.

A ciência conta novas histórias- com seus “paradigmas” inovadores- mas não consegue aprofundar-se muito em determinações primais como o amor, o ódio ou a morte.

São temas que permanecem objeto de uma recorrência incessante, de contos já narrados várias vezes.

Carl Gustav Jung constatou categoricamente uma herança coletiva de arquétipos, de imagens fundacionais e de padrões narrativos.

Nossa arte, nossas crenças religiosas e nossos sonhos são um legado.

Toda nossa cultura recorre a um inventário de ícones primordiais mais antigos que a razão, e gravados, registrados, na própria alma coletiva.

Desta maneira, é por meio da arte, da literatura e de situações oníricas que a imaginação retorna à sua base comum, reconstruindo sempre de novo uma origem compartilhada, comum.

Desenhar figuras na parede da caverna, contar e reencenar historias e situações, reproduzir paisagens e sua fauna humana ou animal e recriar a vida, parecem práticas que obedecem a um impulso elementar.

A observação mimética, mais que tudo, gera personagens.

Personagens se formam a partir de uma composição de diversas partes e fragmentos, como num mosaico.

Collage e montage são formas de representação muito mais antigas que Homero. Trata-se de um processo combinatório.

As ficções servem de espelho para nossas ilusões, nossos sonhos e nossas ambições mais secretas.

O espectador é cúmplice desse misterioso mundo secreto. Existem qualidades fundamentais de identificação e retraimento ou de imitação e rejeição que operam diretamente na colaboração estética entre o criador e a platéia. Todo espectador outorga à ficção sua capacidade de incorporação.

Só uma força dialética pode produzir novas verdades.

Só aqui e agora podemos reescrever mitos, historias e narrativas.

Assim como o performer – ator ou dançarino- o espectador também “assina a criação”.

Como afirma Peter Shaffer:

“Uma poderosa energia incipiente, canalizada por meio de alguma forma (e só assim), pode reconstituir-se como uma energia igualmente furiosa na alma e na mente de seus receptores.

É uma energia que se reconstitui precisamente graças a cada um deles. As dimensões do fogo que se iniciou no cérebro do dançarino ou dramaturgo devem se tornar cada vez menores conforme crescem na imaginação comum da platéia. O trabalho do autor consiste em saber como fazer arder essa chama sagrada num simples receptáculo.

Ao contemplar esse receptáculo fumegando no palco, é possível que alguém diga: “que patético, eu vi o Vulcão, e tudo que me restou foi uma labareda miserável”.

Mas a verdade é que esta labareda, bem apresentada e bem colocada, É o vulcão. “O poder do autor (coreografo e dançarino) para concentrar o fofo e apresentá-lo para sua platéia vai fazer com que o público possa senti-lo, e se queimar em suas chamas, mesmo que nenhum deles nem conheça nem nunca possa conhecer qualquer vulcão...”

Assim, no mais alto grau, e de certa forma num sentido muito superior a qualquer metáfora, o artista é realmente divino para si mesmo e para seu público. Ele cria.

Há sempre algum material novo para ser agregado, incorporado ou justaposto.

“Não invejamos, não servimos nem tememos os deuses, mas, à custa de nossa vida, atestamos sua existência variada e os comovemos por fazermos parte de suas crias aventurosas assim que cessa sua lembrança” Char, in Le Nu Perdu.

ARQUÉTIPO, SÍMBOLO E O CRIATIVO – CARL GUSTAV JUNG

Para JUNG, o inconsciente coletivo é formado pelos instintos e seus correlatos, os arquétipos. Os instintos referem-se à ação, os arquétipos à apreensão da situação implícita na ação. São os dois lados da mesma moeda. Quando constelados, ativados psiquicamente, e numa situação concreta, os arquétipos produzem imagens, fantasias coletivas.

O mundo arquetípico, na sua infinita variação, surge com a humanidade. E é dessa matriz que emerge a multiplicidade de formas culturais. Esse “a priori” é constituído de formas vazias elementares, comparadas por Jung ao “líquido mãe” de onde nascem os cristais, capaz de infinitas possibilidades e arranjos.

Essas formas vazias, os arquétipos, uma vez atualizadas culturalmente – constelados em detrimento de infinitas outras formas relegadas- sofrem uma diferenciação infinitesimal ao longo de vastos períodos históricos, quando então, gastas pela vivência, são abandonadas por outras formas vazias e por um novo desabrochar cultural. Essa é uma maneira do pensamento junguiano dar conta da Historia.

Para Jung, as experiências vividas seriam interiorizadas, sedimentadas nessas formas vazias. Nesta concepção, não são as imagens arquetípicas as representações coletivas que são herdadas, mas sim as formas vazias, um tanto diferenciadas pela vivencia histórica e cultural de milênios. Deste modo, o individuo, ao nascer, seria portador da historia da humanidade.

Se todos somos portadores de todas as formas possíveis, não raro, na loucura, ou no processo de individuação, algumas delas se atualizam, constelam-se, e também não com menos freqüência, seu potencial energético, ou sua numinosidade, costuma produzir inflação (euforia e depressão).

As estranhas fantasias que emergem do inconsciente coletivo não são comportadas, muito ao contrário, são dotadas de poderosa emocionalidade, energia e numinosidade : a dupla vivência do êxtase e do terror. É fundamental torná-las conscientes, para que não se cronifiquem como bolsões psicóticos ou estilhassem o ego.

Como torná-las conscientes se não ligação com o já vivido, se tais fantasias não encontram eco na historia do individuo?

A grandeza de Jung não está na explicação da origem das estranhas fantasias, porém na capacidade de torná-las conscientes mediante a cultura e seus artefatos culturais: os mitos, o imaginário cultural, a arte, a própria ciência.

Para Jung o inconsciente coletivo é:

“. de maneira inesperada, um espaço sem limite pleno, de uma indeterminação espantosa, que parece não ter nem interior nem exterior, nem alto nem baixo, nem aqui nem lá, nem meu nem teu, nem bem nem mal. É o mundo da água onde paira, suspenso, tudo o que é vivente, onde começa o reino do “simpático”, alma de tudo o que vive, onde eu sou inseparável disso ou daquilo, onde eu sinto o outro em mim e onde o outro me sente como sendo eu.O inconsciente coletivo é tudo salvo um sistema pessoal fechado,é uma objetividade vasta como o mundo e aberta ao mundo inteiro”.

... “Lá no inconsciente coletivo eu estou ligado ao mundo numa ligação tão mais imediata que eu esqueço muito facilmente quem eu sou em realidade.” Cw 9,I,pr45-46

“Enquanto o não eu (inconsciente) parece ser oposto a nós, naturalmente o sentimos como um oposto, mas depois entenderemos que o inconsciente coletivo é como um vasto oceano, com o eu flutuando sobre ele como um pequeno barco. Então, quando vemos isso, surge a questão de estarmos contidos no oceano, como os peixes , os peixes são unidades vivas no oceano, eles não são absolutamente como ele, mas estão contidos nele, seus corpos ,suas funções, estão maravilhosamente adaptados à natureza da água, a água e o peixe formam um continuum vivente. Quando aceitamos este ponto de vista, temos de supor que a vida é realmente um continuum e destinado a ser como é, isto é, toda uma tessitura na qual as coisas vivem com ou por meio uma da outra.Assim árvores não podem existir sem animais ou animais sem plantas, e talvez animais não possam ser sem o homem, ou o homem sem animais e plantas, e assim por diante. E sendo a coisa inteira uma tessitura, não é de se admirar que todas suas partes funcionem juntas... porque são parte de um continuum vivo.”

The visions seminars. Spring publication 1976.

Segundo Jung “o trabalho criativo, no que podemos segui-lo, consiste na ativação inconsciente de uma imagem arquetípica e na elaboração e moldagem dessa imagem no trabalho acabado. Dando forma a ele, o artista o transforma na linguagem do presente, tornando assim possível a nós descobrirmos nosso caminho de volta às mais profundas fontes de vida.

E nisto está o significado social da arte: constantemente ela trabalha educando o espírito da época, conjurando as formas nas quais a época está mais carente. O impulso insatisfeito do artista retorna à imagem primitiva do inconsciente, a qual está mais bem aparelhada para compensar a inadequação e a unilateralidade do presente.

O artista apodera-se dessa imagem retirando-a da mais profunda inconsciência a coloca em relação com valores conscientes, transformando-a assim até que ela seja aceita pelas mentes de seus contemporâneos, de acordo com suas capacidades.

Um pouco mais sobre ARQUETIPO, segundo JUNG

“Nem por um momento ousamos sucumbir à ilusão de que um arquétipo pode ser completamente explicado e descartado.

...O máximo que podemos fazer é passar para a frente o sonho do mito e dar-lhe uma vestimenta moderna.E seja o que for que a explicação ou a interpretação faça com ele, o mesmo fazemos também com nossas próprias almas,com resultados correspondentes para o nosso próprio bem estar.É preciso não esquecer que o arquétipo é um órgão psíquico presente em todos nós.”

“...por definição , arquétipos são fatores e motivos que ordenam os elementos psíquicos em certas imagens caracterizadas como arquetípicas,mas de uma maneira tal que podem ser reconhecidos, somente a partir dos efeitos que produzem .Podem ser comparados à presença invisível de uma estrutura de cristal em uma solução saturada.”

“Os arquétipos são simultaneamente dinâmicos. São imagens instintivas que não são inventadas intelectualmente. São permanentes e produzem determinados processos no inconsciente que poderiam ser comparados com os mitos. Essa é a origem da mitologia. A mitologia é a enunciação de uma série de imagens que formulam a vida dos arquétipos.”

“Ninguém viu jamais um arquétipo e também jamais viu um átomo. Mas sabe-se que o primeiro produz efeitos numinosos e o último explosões. Quando digo átomo ,estou falando de idéias que correspondem a ele, mas nunca da coisa-em-si, que em ambos os casos é um mistério transcendental.Nunca ocorreria ao físico que ele matou o pássaro com o seu modelo atômico. Ele está plenamente consciente de que está usando um esquema variável que meramente aponta para fatos que não podem ser conhecidos”

“NA PRÁTICA, observamos os “traços” do arquétipo principalmente nos sonhos, onde eles se tornam perceptíveis como formas psíquicas. Mas este não é o único meio de eles chegarem à percepção: podem aparecer objetiva e concretamente também sob a forma de fatos psíquicos.”

SÍMBOLOS-

“Já que as estrelas caíram do céu e os nossos mais elevados símbolos empalideceram, uma vida secreta prevalece no inconsciente. Essa é a razão pela qual temos hoje uma psicologia e falamos do inconsciente. Tudo isso teria sido supérfluo em uma época ou cultura que possuísse símbolos”.

“.. o nosso inconsciente esconde água viva, espírito que se transformou em natureza,e por essa razão é perturbada.O céu tornou-se para nós o espaço cósmico dos físicos , e o empíreo divino uma vela memória de coisas que antigamente existiam.Mas o coração “abrasa-se” e uma inquietação secreta morde as raízes do nosso ser”

VIDA SIMBÓLICA – ADRIANA FERREIRA

O modo como melhor experimentamos nossa vida arquetípica é através das manifestações simbólicas.

Símbolos são entidades vivas, com um ciclo de vida próprio, eles emergem, desabrocham por um tempo, então declinam e morrem. Novos símbolos tomam existência todo o tempo , em relação aos processos vividos.

Explorar um símbolo é rastreá-lo até a sua raiz arquetípica, é segui-lo através do tempo até que sua configuração universal e sua fundação pisco biológica sejam reveladas. Símbolos são formas imaginais que possuem uma dinastia de relacionamentos que os precederam.

A mente humana adquiriu a capacidade de pensar, usar símbolos, desenvolver explicações e criar mitos como resposta às pressões encontradas por nossa espécie no curso de sua historia evolucionária.

De acordo com esta visão, o aparelho mental é constituído de numerosos “módulos” ou arquétipos, que evoluíram através da seleção natural para encontrar problemas adaptativos específicos do confronto vivido pelos nossos ancestrais caçadores no passado. Estes módulos, não apenas proveêm as regras para serem seguidas, mas também muito da informação igualmente necessária para os processos adaptativos da espécie, tanto quanto os evolucionários.

A perspectiva evolucionária provê uma visão profunda e integrativa do papel adaptativo que os símbolos arquetípicos têm desempenhado na sobrevivência e sucesso de nossa espécie.

Símbolos criam uma resposta vital e abstrata que vai ser expressa fisicamente, nervosamente, mentalmente e emocionalmente no ser organizado (individuo) ou por uma reação energética em um ser não organizado (sem consciência).Independente de ser uma imagem combinada ou natural ou um sinal convencionado, a propriedade do símbolo é a de ser, possibilitar uma síntese.

Símbolos toleram paradoxos e combinam contradições, acordam intimidações, são atléticos, plásticos. Podem ser entendidos como metáforas para necessidades arquetípicas e intenções ou expressões de padrões arquetípicos básicos.

O símbolo é uma corporificação atransitória de tudo que é análogo e associado entre si. Sua qualidade mágica está na capacidade de falar simultaneamente para muitos níveis de experiência.

O sistema simbólico no qual a consciência se baseia, é construído a partir de significado.A formação do símbolo é relacionada à manifestação: uma idéia abstrata é transformada em algo tangível.A percepção do significado não é apenas cognitiva, mas também visceral. O sentido do símbolo é experimentado como um poder capaz de desencadear processos transformadores e integradores na psique.

Vemos com clareza: olho no símbolo, sua vida, sua força, seu poder de formação e transformação. De formar no indivíduo um novo repertório, nova linguagem para falar consigo mesmo criando um foro íntimo, sagrado, onde o individuo poderá de fato estar a nu consigo mesmo, à vontade.

Só desta maneira cada um pode de fato conciliar-se com sua totalidade, como no dizer dos gregos: intima praecordia movit – ou seja: mover-se a partir de seu próprio coração.

A FUNÇAO TRANSFORMADORA E FORMADORA DO SÍMBOLO É UMA MANIFESTAÇAO DO ARQUÉTIPO.É o símbolo vivo.

Como diz Sri Aurobindo em seu poema:

“ a brilliant code penned with the Sky for page,

Of which our thoughts and hopes are signal flares,

A break in the darkeness, a ray of light, of life, a messenger from beyond...

A call for adventure, to see, to listen.... (Savitri – a legend and a symbol).

“ um código brilhante, suspenso, tendo por página o céu

Do qual nossos pensamentos e esperanças são pálidos sinais

Uma trégua na escuridão, um raio de luz, de vida,

Um mensageiro longínquo,

Um chamado a aventura, a ver, a ouvir....”

(tradução singela e despretenciosa,só para dar vida à imagem)

Sentir o poder de um símbolo é ser transportado para outra realidade. O que na vida cotidiana não tem crédito, aí se torna verdadeiro. Tal e qual nos sonhos.

Uma matéria que abraça toda a vida, nada excluindo, mas ampliando a verdade das camadas mais misteriosas da nossa condição humana.

Na dimensão simbólica da existência, os objetos mundanos, situações, são transformados, transubstancializados em objetos e coisas sagradas, tudo através de nossa capacidade de imaginar, conceber e captar imagens.

Fazer parte de um ritual, entrar em um santuário como participante de um rito, é entrar em um estado alterado de consciência, um padrão mental totalmente diferenciado similar a um estado de transe ou sonho.

Algo acontece – é real – ficamos em suspensão. Entramos em nossa historia que faz parte daquela. Depois do evento, nunca mais somos os mesmos.

Um símbolo, algum símbolo nos acertou em cheio e dormiremos com ele, acordaremos com ele, até que sua força tome lugar em nossa vida, em nosso ser.

O espírito da vida simbólica alcança desalojar egos de suas certezas e de sua fantasiosa solidez.

ANAHATA, Vale do Matutu, 23 de julho de 2010.