quinta-feira, 31 de março de 2011


CRIANÇAS BRINCANDO - ELISEU VISCONTI - BRASIL.

Manoel de Barros

Com aquela sua maneira de sol entrar em casa
E com seu olhar furado de nascentes
O menino podia ver até a cor das vogais-
Como o poeta Rimbaud viu.
Contou que viu a tarde latejar de andorinhas.
E viu a garça pousada na solidão de uma pedra.
E viu outro lagarto que lambia o lado azul do silêncio.
Depois o menino achou na beira do rio uma pedra canora.
Ele gostava de atrelar palavras de rebanhos diferentes
Só para causar distúrbios no idioma.
Pedra canora causa!
E um passarinho que sonhava de ser ele também causava.
Mas ele mesmo, o menino
Se ignorava como as pedras se ignoram.

quarta-feira, 30 de março de 2011


BERTHE MORISOT - IMPRESSIONISTA FRANCESA-

A arte de ser feliz
Cecília Meireles


Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

terça-feira, 29 de março de 2011

DANDO GRAÇAS


ÂNGELUS - MILLET - REALISMO FRANCÊS -


DANDO GRAÇAS
PELA VIDA, E SAÚDE.
PELA INFÂNCIA E ALEGRIA,
E CADA DIA QUE PASSA.
PELAS BENÇÃOS RECEBIDAS.
PELO SOL E PELA CHUVA,
E PASSARINHOS CANTANDO,
CADA FOLHA, FRUTO, FLOR,
PELAS COISAS PEQUENINAS,
QUE NEM VEMOS PASSAR,
NO DIA A DIA BANAL.
PELO ESPONTÂNEO SORRISO
DE UMA CRIANÇA FELIZ.
POR AMIGOS VERDADEIROS,
SUA PRESENÇA, FORÇA, FÉ,
QUE NOS FAZEM LEVANTAR,
ENCORAJAM A ANDAR,
SEMPRE EM FRENTE,
VIDA, AVANTE!
GRATA!
ELIANA MIRANZI.UBERABA/2011.

domingo, 27 de março de 2011

Vontade de saber quem sou


NORMAN ROCKWELL - NORTE-AMERICANO -

VONTADE DE SABER QUEM SOU
CRISTIANA MUSA RESENDE
Sempre me vangloriei dizendo: Nunca tive TPM, não sei o que é gripar, café nunca me tirou o sono, tenho estomago de avestruz, posso comer de tudo que não passo mal e a pior de todas, não sei mentir.
Depois dos 40 me tornei o Pinóquio, nunca menti tanto e pra completar o nariz também está crescendo. Bem vinda ao envelhecer...
Outra mentira é essa que eu dizia que não trocaria meus 40 por idade nenhuma. A melhor idade. Já beirando os 45, faço qualquer negócio pra ter 23 e começar de novo.
Mas o que faria diferente a não ser ter mais cuidado com o sol?
Teria tido outra profissão? Casado com outro homem?Não teria tido filhos... Ai os filhos... SIM! Teria me dedicado muito mais a eles quando eram pequenos. Se soubesse que a base fundamental da formação de uma pessoa é até os 7,8 anos, não teria trabalhado tanto e negado tanta presença a eles. Mas os tive, tomei muito sol, o café hoje me dar dor de estomago, tenho TPM e casei com um homem que tem o nome do meu pai. É! Pratiquei todos os clichês que uma pessoa comum pratica ao longo de sua existência. E só agora sei por quê.
Porque sou um SER HUMANO. Também tive pais que não sabiam das coisas quando eu tinha 7, 8 anos. Tive muitos medos, cometi muitos erros, negligenciei coisas importantes, só não me rebelei na adolescência como a maioria e talvez por isso viva nessa eterna crise em plena idade adulta. Uma crise crônica que, pelas minhas contas começou aos 35 e se estende por mais de 10 anos com a sensação que não vai parar nunca. Tomara!Nesse caso o nunca é bem vindo. Será que é um sinal de que meus questionamentos vão me acompanhar até o fim dos meus dias por aqui?
Descobri que além de ser Humana, são elas, as minhas perguntas que me lembram sempre que as respostas vêm de DEUS. Por isso quando respondo alguma, ou toma uma decisão importante, ou escolho um caminho novo, tomo o cuidado de checar com Ele.
Ai meu Deus, olha eu mentindo de novo.
Quantas decisões impulsivas, e quantas eu demorei uma vida pra tomar, e ainda não as tomei?
Meu Deus, eu te peço: além de ter consciência de ser um SER HUMANO, eu tenha a vontade de continuar perguntando: Quem Sou?Que essa vontade não me abandone, porque Quem Sou muda ao longo do tempo e eu não posso me perder.
UBERABA/2011

segunda-feira, 21 de março de 2011



BEATRIZ MILHAZES - MARIPOSA -

ROSEANA MURRAY

Quero asas de borboleta azul
Para que eu encontre
O caminho do vento
O caminho da noite
A janela do tempo
O caminho de mim.

JUAN MIRÓ



Canção Mínima
Cecília Meireles


No mistério do Sem-Fim
Equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
E, no jardim, um canteiro;
No canteiro, uma violeta
E, sobre ela, o dia inteiro,
Entre o planeta e o Sem-Fim,
A asa de uma borboleta.

sábado, 19 de março de 2011


JACKELINE NEWBOLD-NORTE AMERICANA -

ARTE
ELIANA MIRANZI

TUDO NA VIDA PODE SER ARTE:
O QUE VOCÊ FAZ E COMO FAZ.
A MANEIRA COMO SE VESTE,
E COMO SERVE SUAS REFEIÇÕES.
O MODO COMO AMA ALGUÉM
E SEU JEITO DE DEMONSTRÁ-LO.
SUAS CONVERSAS, SEU SORRISO,
AS COISAS NAS QUAIS ACREDITA,
E TODOS OS SEUS SONHOS.
SEU MODO DE CUIDAR DAS PESSOAS,
DE SUA CASA E SUAS PLANTAS.
E COMO VOCÊ CONTORNA OS PROBLEMAS:
COM UMA SIMPLES XÍCARA DE CHÁ
OU UM CHOCOLATE QUENTE EM DIA DE CHUVA.
SUA LETRA, SEU ANDAR, ISSO É ARTE.
ATÉ MESMO O MODO COMO SEUS SENTIMENTOS
O AFETAM E ONDE VOCÊ OS COLOCA.
QUEM SABE NUM PEQUENO VASO,
À PORTA DE ENTRADA?
A VIDA É TODA ELA - ARTE -
Uberaba/2011.

quinta-feira, 17 de março de 2011




RIO – OBRA DE LEDA CATUNDA (TRABALHO COM TECIDOS)

POEMA DE FERNANDO PESSOA (COMO: RICARDO REIS)
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós - próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

quarta-feira, 16 de março de 2011


RENÉ MAGRITTE

A CHUVA
ROSEANA MURRAY

A chuva escreve
na partitura das árvores
um som contido e cristalino,
envolve a mata em água,
traz até a casa
novelos de um passado contínuo.

Posso ouvir meus ancestrais
entre as dobras da chuva:
havia um tio que tocava violino,
escuto seus passos em cima
do telhado
e minha avó soprava o tempo
para que um dia
eu nascesse e a guardasse
num porta-retratos.

segunda-feira, 14 de março de 2011


CATEDRAL DE ROUEN - MONET -TEXTO ENVIADO POR LUCIANA PELIZON

Análise Socrática dos Tempos Atuais

Do Mundo Virtual ao Espiritual

Frei Betto


Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos e em paz nos seus mantos cor de açafrão.
Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade?'
Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: 'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula á tarde'.
Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...' 'Que tanta coisa?', perguntei.
'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a elencar seu programa de garota robotizada.
Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação!'
Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados.
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito.
Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!’
Mas como fica a questão da subjetividade?
Da espiritualidade?
Da ociosidade amorosa?
Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual.
Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. E somos também eticamente virtuais...
A palavra hoje é 'entretenimento' ; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!' O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose. O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.
Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shoppings centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas...
Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista.
Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas.
Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno...
Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do Mc Donald...
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: 'Estou apenas fazendo um passeio socrático.' Diante de seus olhares espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia:
- "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz !"

terça-feira, 8 de março de 2011


OBRA DE MARY CASSAT-IMPRESSIONISTA NORTE AMERICANA.

EU, MULHER
Nasci assim: mulher, sexo feminino, com a arquitetura da reprodução já pronta, vinda de fábrica.
Não escolhi. Mas não me queixo. Pelo contrário, agradeço aos céus por ter vindo nessa condição: fêmea. A alma grande, o coração aberto, a cabeça cheia de idéias.
Um corpo que sofre várias transformações ao longo da vida: meninice, puberdade, ciclos menstruais, adolescência, tensão pré-menstrual, vida adulta. Gravidezes, partos, aleitamento. Mais um pouco e já chega a menopausa. Transformações muitas vezes incompreensíveis a nós próprias, mulheres, o que se dirá em relação aos homens! Eles, que se transformam bem menos. Eles, nossos parceiros, nosso avesso, positivo e negativo.
À mulher cabe conhecer-se, assim como à natureza, o mundo, as pessoas, para poder entendê-las, aceitá-las e absorver os fatos da vida, que ocorrem a todos nós; impossível fugir deles.
À mulher cabe ser como um treinador de um time, uma professora sem aposentadoria, um gerente 24 horas. Dela espera-se que saiba sanar dúvidas, curar dores, julgar situações. Dela espera-se que esteja sempre disposta, cheia de energia, entusiasmada, e pronta para qualquer coisa. Não importa que tipos de problemas que surjam, que cansaço se instale, quanto desânimo e frustração sinta. Que não adoeça, não desanime, não chore e nem reclame. Que tenha sempre um abraço pronto, um colo aconchegante, um sorriso, um beijo. E ela tudo isso consegue, usando seus instintos e treinando sua intuição. Alma rica, coração grande, disponibilidade sempre...
Família começa com F de Fêmea, Feminino, Fada. Só existem famílias porque há mulheres que pariram, criaram, alimentaram seus componentes. Mesmo não estando presente, a mulher é pedra fundamental, esteio, sustentação em qualquer família, em qualquer sociedade, enfim, no todo.
A mulher tem comprometimento com a vida, pois a ela foi dado o dom de gerar vida.
A Vida é feminina. E na mulher há sempre Vida. Viva. Valente. Verdadeira.
Eliana Miranzi/2005

segunda-feira, 7 de março de 2011


ALDO BONADEI-PAISAGEM RURAL-

Adélia Prado
Bucólica Nostalgia


Ao entardecer no mato, a casa entre
Bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo,
Aparece dourada. Dentro dela, agachados,
Na porta da rua, sentados no fogão, ou em si mesmo,
Rápidos, como se fossem ao Êxodo, comem
Feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis,
Muitas vezes abóbora.
Depois, café na canequinha e pito.
O que um homem precisa pra falar,
Entre enxada e sono:”Louvado seja Deus!”.

domingo, 6 de março de 2011


VAN GOGH - A CASA AMARELA -

Impressionista
Adélia Prado

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

sexta-feira, 4 de março de 2011

poema


ANITA MALFATTI - ONDA


LÁGRIMAS DA HUMANIDADE
ELIANA MIRANZI/2011


DAS PROFUNDEZAS DE UM MAR SEM FIM
SURGE O LAMENTO SELVAGEM DE UM FRÁGIL TUDO.
CUIDO PARA QUE NÃO VAZE: DESTRUIRIA O MUNDO.
MAS É COMO COLOCAR SACOS DE AREIA À BEIRA-MAR:
NADA SEGURA A FORÇA PRIMITIVA DAS ÁGUAS.
NADA NEM NINGUÉM PODE COM O FUROR INSANO
QUE REMONTA AO DIA UM DOS PRIMEIROS DIAS
DA CRIAÇÃO; À DOR DE SER FEITO DE BARRO.
AO ENTENDIMENTO DA TOTAL IMPOTÊNCIA
DIANTE DO FATO IMUTÁVEL
DE SER HUMANO.

quinta-feira, 3 de março de 2011



O SONHO- MATISSE

Canção da escuta
Lya Luft


O sonho na prateleira
me olha com seu ar
de boneco quebrado.
Passo diante dele muitas vezes
e sorrimos um para o outro,
cúmplices de nossos desastres cotidianos.
Mas quando o pego no colo
(como as bonecas tão antigamente)
para avaliar se tem conserto
ou se ficará para sempre como está,
sinto sem estranheza
que dentro dele ainda bate
um pequeno tambor obstinado
e marca - timidamente -
um doce ritmo nos meus passos

quarta-feira, 2 de março de 2011

HISTÓRIAS DE QUINTINO




RETALHOS DE HISTÓRIAS E DE SONHOS

“Os seres humanos estão em uma viagem de percepção que tem sido momentaneamente interrompida por forças exteriores. Acredite em mim, nós somos criaturas mágicas de percepção. Se não temos tal convicção, não temos nada.”
Dom Juan / Carlos Castaneda – Passes Mágicos p.37.


Por que retalhos?
Porque das muitas histórias ouvidas na infância, foi só o que sobrou na memória: fragmentos, retalhos.
E os sonhos...?
Ah os sonhos!
Estes então...
Jorge Luis Borges diz ‘que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é o mais árduo que pode empreender um homem, ainda que penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou amoedar o vento sem efígie.’
Por isso, tudo que eu posso apresentar são apenas fragmentos, retalhos que vou juntando. Estou fazendo como faz a costureira, que com paciência junta pequenos retalhos de diferentes tecidos e com eles faz uma colcha.
Assim vou juntando pequenos retalhos de histórias da infância com pequenos pedaços de sonhos e formando uma colcha de histórias. Retalhos de histórias com retalhos de sonhos, depois de costurados, não dá mais para saber o que são uns e o que são outros.
As histórias vem de muito, muito tempo atrás, “quando ainda não existia televisão no mundo”. Todo começo de noite, antes de dormir, a meninada reunia-se para as últimas diversões do dia. Alguma brincadeira de roda ou então para ouvir os casos de ‘tio Agustinho’. Não sei por que, mas quase sempre o herói das histórias tinha o nome de Joãozinho. Joãozinho fazia e acontecia. Era sempre o mais esperto, mais justo, mais valente e sempre que tinha uma disputa ganhava e acabava casando com a filha do rei.

A história que agora reconto, tio Agustinho me contou recentemente, mas só me deu pedaços da história, alegando que já não se lembrava do causo todo e que ele estava só ilustrando uma situação sobre a qual conversávamos.
Resolvi então ‘costurar’ neste grande retalho de história recebido de meu tio Agustinho alguns outros retalhos de sonhos. Esta é a segunda ‘costura’ de histórias que apresento ao grupo. Para quem não se lembra a primeira foi a de Falaico e de Selene.

História do Joãozinho que matou a avó

Era uma vez um rapaz chamado Joãozinho.
Rapaz muito novo. Na verdade, quase um menino ainda.
Joãozinho encontrava-se numa situação insustentável para seu pouco tempo de vida neste vasto e misterioso mundo.
De sua família restou apenas ele e uma avó idosa, doente e ranzinza, que exigia dele muito trabalho e cuidado.
Depois de algum tempo labutando para cumprir tal sina, Joãozinho chegou ao limite humano. A vida estava sendo muito cruel. Não só não lhe tinha dado nada, como sobrecarregou-lhe os ombros com uma herança por demais pesada.
E num momento de revolta e desespero, Joãozinho sucumbiu ao destino. Num ato de desatino cometeu o maior dos sacrilégios – pôs fim aos dias de existência da única raiz que ainda lhe restava no mundo: matou sua avó.
Passado um pouco da loucura que o acometera, concluiu que nada mais restava senão aceitar que acabara de repetir o mesmo ato do primeiro homem nascido na terra, Caim ao matar seu irmão Abel. Por certo seu destino não seria muito diferente do primeiro assassino do mundo. E tal como este, abandonou o rancho em que vivia com a avó e pôs-se a vagar mundo afora.
Após andar por caminhos desertos, sem ver uma só viva alma o dia todo, já à boca da noite, chegou a uma casa. Como é o costume das pessoas do interior, bateu palmas e chamou alto:
– Ô de casa!
O dono da casa, também como é comum, sem abrir a porta, perguntou:
- Quem chama?
E para surpresa de Joãozinho, assim que fez menção de responder, uma voz, vinda não se sabe de onde, menos ainda de quem, respondeu em seu lugar:
– É o Joãozinho que matou a avó!
Assustado, não esperou qualquer resposta do morador e mais que depressa fugiu estrada afora. Passou a noite ao relento, atormentado pela idéia de estar amaldiçoado ou de ter ficado louco.
No dia seguinte pôs-se a caminho afastando o mais que pode daquele lugar. Só ao por do sol foi que avistou outra casa novamente. Cansado e vencido pela fome, aproximou-se da casa, bateu palmas e chamou:
– Ô de casa!
Como da vez anterior o morador indagou:
– Quem chama?
Joãozinho sentiu um arrepio na espinha, o coração disparou, a garganta secou e a língua travou e antes que pudesse dizer uma só palavra, a voz, vinda não se sabe de onde, dita não se sabe por quem, respondeu em seu lugar:
– É o Joãozinho que matou a avó!
Saiu em desabalada carreira novamente. Outra noite ao relento tendo por companhia o tormento da maldição.
No final do terceiro dia de sua desventura chegou a uma terceira casa. Nova tentativa de pedir ajuda e novamente a voz da maldição respondeu em seu lugar. Definitivamente, estava amaldiçoado.
Convencido de que jamais poderia esconder seu crime e que estava condenado para sempre, a carregar aquela maldição para qualquer lugar para onde fosse não lhe restou outra escolha, senão evitar aproximar-se de alguém.
Passou a viver como bicho do mato. Arranchou-se como pode nas proximidades de um rio e ali passou a viver sua sina. Comia o que encontrava pelo mato e a noite protegia-se como dava. Já tinha passado um bom tempo que estava vivendo ali daquele jeito. Já estava até se conformando com tal destino.
Certo dia avistou na barranca do rio uma mulher com uma criança de colo e uma grande trouxa de bagagem. A mulher tentava atravessar a forte correnteza do rio. Caso ela entrasse na água carregando a criança e aquela bagagem seria morte na certa. Esquecendo-se da maldição, Joãozinho correu na direção da mulher impedindo que ela cometesse o desatino de atravessar o rio sem ajuda.
Depois que pôs as duas vidas a salvo do outro lado do rio, Joãozinho perguntou à mulher se ela conhecia algum morador por aquelas bandas, onde ele pudesse encontrar trabalho e moradia. A mulher respondeu que o único morador de que tinha notícia naquele sertão, era de um homem que vivia um dia de caminhada rio acima.
Animado com os novos acontecimentos, Joãozinho agradeceu a informação e imediatamente pôs-se a caminho. No final do dia, tal como a mulher havia informado, encontrou a casa. Aproximou-se e para sua surpresa a voz da maldição ficou muda. Explicou ao dono da casa de que era sozinho no mundo e que procurava trabalho e moradia.
O pequeno fazendeiro disse que trabalho e moradia ele podia arrumar, mas que não tinha dinheiro para pagamento. Joãozinho respondeu que tudo o que necessitava era de comida e pouso. E assim ficou combinado entre os dois.
No dia seguinte o fazendeiro mostrou a Joãozinho a tarefa a ser realizada na propriedade: limpar uma quadra de terra. Era coisa pouca. Não mais que um dia e meio de trabalho.
Animado com o novo rumo que sua vida tomava, Joãozinho trabalhou o dia todo e como havia calculado, ficou apenas pouca coisa para o dia seguinte. Duas ou três horas de serviço no máximo. Voltou para casa e depois de muito tempo, teve uma noite de sono tranqüilo.
No outro dia, bem cedo, saiu para terminar logo o restante do serviço do dia anterior. Levou o maior susto quando chegou no terreno. A quadra de terra estava igualzinha ao dia anterior, como se ninguém tivesse trabalhado ali. Todo o serviço que havia feito, tinha desaparecido. A terra estava como se ele não tivesse dado uma única enxadada.
Refeito do susto e já se acostumando com acontecimentos estranhos em sua vida, pôs-se a trabalhar. No final do dia, já muito cansado, restou apenas uma pequena nesga de terra a ser limpa. Voltou para casa, já não mais tão tranqüilo como no dia anterior, mas estava convencido de que estava no caminho certo.
No terceiro dia de trabalho, aconteceu a mesma coisa. Como se ali ninguém houvesse trabalhado antes. Sem compreender o que estava acontecendo, mas certo de que as coisas seguiam o rumo que deviam seguir, trabalhou o dia todo, como se já não soubesse de antemão o resultado de sua lida.
O fazendeiro, homem de pouca conversa, nada perguntava a respeito de seu trabalho e ele, Joãozinho, achou por bem deixar as coisas seguirem seu curso natural. E assim ficou muito tempo lutando com o trabalho na quadra de terra. Dia após dia trabalhava sem ver nenhum resultado diferente.
Nunca conseguiu vencer a tarefa em um só dia. Sempre ficava um pouquinho para o dia seguinte e a cada novo dia era como se fosse o primeiro dia de trabalho.
Depois de um bom tempo ali vivendo. No fim de um determinado dia, o fazendeiro disse a Joãozinho que estava satisfeito com seu trabalho, mas que daquele dia em diante não necessitava mais de sua ajuda na fazenda. Mas caso ele julgasse ser capaz de executar uma difícil tarefa, faria um novo acordo com ele.
Tratava-se de uma longa viagem, que Joãozinho teria que fazer para levar uma carta do fazendeiro a sua mãe. E passou a falar sobre o caminho para chegar a casa de sua mãe.
Era um caminho cheio de desafios pelos quais Joãozinho teria que passar. Caso não vencesse algum dos desafios, jamais chegaria ao destino final e poderia mesmo, perder a vida nesta viagem. Caso ele aceitasse a tarefa, ao voltar, o fazendeiro o recompensaria de alguma forma.
Sabendo que seu tempo ali terminara e não sabendo o que poderia encontrar pela frente, caso não aceitasse a nova tarefa, Joãozinho aceitou fazer a viagem, mesmo com todos os perigos que correria.
O fazendeiro disse então a Joãozinho, que para atingir o objetivo de chegar à casa de sua mãe, ele não poderia deixar envolver-se por nenhuma outra situação que encontrasse pelo caminho. Ele teria que ter toda atenção no que estaria fazendo: uma viagem. A finalidade de toda viagem é chegar a um determinado lugar. Quem se esquece desta finalidade não chega a lugar nenhum, apesar de muito caminhar. Que ficasse atento durante a viagem, pois haveria perigos pelos quais teria que passar.
E assim instruído pelo fazendeiro, no outro dia bem cedo, aos primeiros sinais do nascer do dia, Joãozinho tomou o rumo da estrada.
Estava animado com sua nova aventura, mas bem no fundo de sua alma, o sentimento de ter matado a avó ainda o corroia por dentro. Seu mais profundo desejo era poder limpar-se daquele pecado. Se houvesse alguma coisa que ele pudesse fazer para recuperar a vida da avó, estava disposto a fazer, não importava o quanto fosse difícil. Naquele momento o que ele mais queria era reatar a ligação com sua ancestralidade, que num acesso de loucura ele havia destruído. Assim pensando, assim sentido, Joãozinho seguiu viagem.

Encontro com o menino pagão.

Depois de andar um bom trecho de estrada. O sol já havia passado do meio do céu, Joãozinho sentou-se a beira do caminho sob a sombra de uma árvore para comer e descansar um pouco. Tão logo terminou de comer, ouviu barulho de alguém andando no mato ali por perto.
Avistou um menino de uns oito ou dez anos, que recolhia lenha pelo mato. Já tinha apanhado um grande feixe de lenha, com o qual lutava para carregar. Não podendo com o peso do feixe de lenha, o menino o deixava no chão e voltava a andar pelo mato em busca de mais lenha, que juntava à carga com a qual já não podia. Fazia nova tentativa de levantar o feixe de lenha, não conseguindo ergue-lo, deixava o no chão e saia em busca de mais lenha. Nova tentativa de carregar o feixe. Gemia, cambaleava de tanto fazer força e nada de poder com a carga.
Aquilo era muito estranho. Não dava para entender como o menino não percebia a incoerência de seus atos. Ele já não podia com a carga que possuía e ao contrário de procurar aliviar o peso, ele acrescia mais peso ainda. Dava tristeza ver alguém agindo de tal forma.
Joãozinho já estava para levantar e dar conselhos ao menino, quando lembrou-se das recomendações do fazendeiro. E de que o homem havia falado que ele encontraria ‘o menino pagão’, uma alma prisioneira do sofrimento. Aquela cena só poderia ser um dos desafios pelos quais ele teria que passar. Então compreendeu que naquele caso, nada poderia ser feito para ajudar aquela alma. Somente ela, por si mesma, teria que chegar a compreensão do que fazia a si mesma. Não havia ninguém infligindo sofrimento a ele, a não ser o próprio. Somente ele poderia parar de causar tanto sofrimento a si próprio.
Compreendeu que só é possível ajudar alguém quando a pessoa não age como aquele menino, que ao invés de aliviar o excesso de peso de sua carga, acaba acrescentando mais peso ainda. Aprendida a lição, Joãozinho, seguiu seu caminho.

Encontro com os homens-pedra.

No segundo dia de viagem, após parar novamente sob a sombra de uma árvore para comer e descansar, Joãozinho acabou dormindo. Depois do ocorrido já não sabia mais afirmar se tudo não tinha passado de um sonho ou se realmente tinha tido um encontro com dois seres que eram meio humanos e meio pedra.
Fato é que, tivesse sido sonho ou não, com toda certeza, a experiência pela qual acabara de passar, tratava-se de mais um dos desafios de sua jornada.
Os seres com os quais Joãozinho encontrou, eram uma espécie de opostos complementares como se fossem assim: direito-esquerdo, começo-fim, dentro-fora, vai-vem, sobe-desce, quente-frio, longe-perto, tudo-nada, cedo-tarde, doce-amargo, claro-escuro, calmo-agitado, alegre-triste e assim por diante.
Um era confiável, sereno, justo, pacífico, o outro vingativo, irritado e violento. Eles não eram humanos, mas possuíam a forma humana e não se sabe por que, mas sofriam de uma maldição que estava aos pouco transformando os em pedra.
O ‘lado’ irritado-escuro-violento acusou Joãozinho de ser o responsável pela maldição a qual estavam condenados. Afirmava que se eles matassem Joãozinho, esmagando sua cabeça, iriam livrar-se da maldição.
Joãozinho sabia que havia feito besteiras na vida, mas aquela acusação era injusta. Era uma situação semelhante a que se conta sobre as charadas da esfinge – decifra-me ou te devorarei!
Para provar que era inocente naquele caso e que ter sua cabeça esmagada não livraria os ‘homens-pedra’ da maldição, Joãozinho perguntou ao seu acusador se ele sabia como a maldição havia começado. O ‘homem-pedra’ pensou... pensou... e não soube responder. Então Joãozinho concluiu: já que ele não sabia como a maldição havia começado, ele também não poderia saber como por fim a mesma. Portanto, afirmar como estava fazendo, que com sua morte iria resolver o problema da maldição, não era verdade. O ‘homem-pedra’ pacífico-justo-sereno concordou com Joãozinho e deixou que ele seguisse seu caminho em paz.

Por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento.

No terceiro dia de viagem ao passar por um bosque, Joãozinho avistou muitas árvores com lindos frutos. Ele não conhecia as árvores, mas os frutos pareciam muito saborosos. Não sabendo quantos dias mais duraria a viagem e sua matula já estava com pouca comida. Achou que pudesse resolver a questão da comida enchendo sua capanga com aqueles frutos, poupando assim a pouca reserva de comida de que dispunha.
Mas nem tudo que reluz é ouro. Ao provar os frutos, apesar da boa aparência, eles tinham sabor desagradável, era praticamente impossível comê-los. Joãozinho não teve outra alternativa a não ser alimentar-se apenas do que dispunha.
Este fato o fez lembrar-se de uma história que sua velha avó costumava contar, que segundo ela, quando Jesus andou pelo mundo, teria contado – Numa festa de casamento, as moças convidadas eram responsáveis pela manutenção das lamparinas quando chegava a noite. E aí aconteceu que numa certa festa, parte das moças eram previdentes e providenciaram azeite suficiente para suas lamparinas para queimar a noite toda e parte das moças eram imprudentes e não providenciaram azeite para a noite toda. Aconteceu do casamento atrasar e quando a festa estava para começar suas lamparinas já não tinham mais azeite. Foram então pedir azeite para as moças previdentes. Estas responderam que não podiam dividir o azeite com elas, porque dispunham apenas o suficiente para suas lamparinas e se o dividissem, todos acabariam no escuro. Que as imprudentes fossem então comprar azeite no mercado. Tão logo saíram a festa começou e a porta fechou-se. Quando voltaram já não puderam mais entrar para a festa.
Por pouco Joãozinho não cai na situação das moças imprudentes. Uma vez iniciada a jornada não havia outra fonte de recurso a não ser a que ele havia providenciado aos sair de casa. Por isso teve que administrar muito bem os recursos que possuía.
E assim em cada acontecimento durante sua viagem ele aprendia mais e mais.

Pra encurtar a história...

Foram muitas e muitas as provas pelas quais Joãozinho teve que passar e em cada uma delas uma lição aprendida.
São tantas que se fosse falar de todas levaria dias contando. Por isso conto hoje apenas três. Um outro dia talvez eu possa contar outras.

Para terminar...

Após caminhar dias, até perder a conta, e passar por todas as provas, finalmente, Joãozinho avistou uma casa, que pela descrição do fazendeiro, só podia ser a casa que procurava.
Chamou na porta e quem atendeu foi uma senhora idosa, porém com muita vitalidade. Era a mãe do fazendeiro.
Joãozinho apresentou-se e entregou a carta para a mulher, que o convidou a entrar. Certamente ele estava cansado e com fome.
Era verdade, Joãozinho estava para cair de tanta fome. Em nenhum dia de sua caminhada tinha sentido tanta fome como naquele dia.
A mulher disse para Joãozinho sentar que ela iria trazer a comida. Joãozinho mal podia esperar. Então ela pôs sobre a mesa umas três ou quatro panelinhas tão pequenas que cabiam no máximo umas três colheres de comida em cada uma.
Joãozinho não disse nada, mas pensou que só aquele pouquinho de comida não mataria sua fome. Mesmo assim virou todo o conteúdo das panelinhas no prato que mal deu para chegar ao meio. Começou a comer e quando já estava para terminar o meio prato de comida, viu então que as panelinhas estavam cheias novamente, como se ele não as tivesse esvaziado. Virou todo o conteúdo novamente no prato, mal chegou ao meio, voltou a comer. Quando já estava terminando de comer o outro meio prato e ainda tinha fome, olhou e as panelinhas estavam cheias novamente. Assim comeu até não ter mais fome e as panelinhas continuavam cheias.
No outro dia Joãozinho levantou cedo e já se preparava para fazer a viagem de volta. A mãe do fazendeiro lhe disse que não se preocupasse com o retorno. Que na verdade seu filho morava ali bem pertinho. Joãozinho ficou sem entender a afirmação da mulher, já que ele caminhará tantos dias para chegar ali.
Então a mãe do fazendeiro o conduziu até o fundo do quintal, abriu um portãozinho e mostrou a casa de seu filho a poucos metros de distância.
Joãozinho retornou à casa do fazendeiro e este lhe disse que conforme o prometido iria recompensá-lo por haver feito a viagem com sucesso.
Levou Joãozinho a uma sala cheia de objetos antigos e valiosos. Disse que ele podia escolher qualquer um daqueles objetos como pagamento. Joãozinho ficou horas olhando os objetos. Cada um mais bonito que o outro, mas nenhum lhe parecia adequado. Finalmente encontrou um pequeno objeto que lhe pareceu interessante. Não era nada grandioso. Era uma antiga vasilha usada para por rapé. Joãozinho pegou o objeto examinou, examinou. Não sabia dizer por que, mas era aquele objeto que ele queria.
Então uma vez mais os mistérios deste mundo se manifestaram, assim que Joãozinho limpou e abriu a vasilha, sua avó saltou de lá vivinha novamente.
Joãozinho ficou muito contente e agora depois de ter vivido tantas experiências encontrava-se preparado para lidar com sua herança. Construiu uma casinha par si e sua avó e passou a viver de forma sábia e feliz.


“Passou no pé do pinto,
passou no pé do pato.
Quem souber mais,
que conte três ou quatro.”


Quintino de Sousa Martins
Aprendiz de contação de histórias.
Fevereiro de 2011 / Lua cheia.

HISTÓRIAS DE QUINTINO




A HISTÓRIA DE FALAICO O REI TIRANO
E SELENE A DEUSA LUA

Esta história nasceu de um sonho e o sonho nasceu de um trabalho terapêutico. Por isso, antes de contar a história de Falaico, o tirano e Selene, a deusa Lua, devo primeiro contar como a história nasceu.
Tendo eu recebido de minha terapeuta as tarefas de contar uma história no XIII Seminário de Sonhos (junho/2010) e de iniciar um trabalho sobre a questão do feminino e do masculino, nesta mesma semana, em uma única noite, lembrei-me de nove cenas de sonhos, dentre elas a que deu origem à história de Falaico e Selene.
A história veio no sonho praticamente como a relato, exceto os nomes dos personagens e o tom próprio de história, que eu elaborei, depois, ao escrever.
A forma como encontrei os nomes dos personagens constitui outra manifestação do processo terapêutico. Um dia após a noite do sonho, escrevi toda a história, mas faltavam os nomes, com os quais eu ainda não tinha atinado. Peguei um dicionário de mitologia que estava próximo de onde acabara de escrever a história, em busca de uma idéia. Não sei se abri o livro ou se ele abriu-se em minhas mãos. Fato é que estava aberto exatamente na letra F e o primeiro verbete que me saltou aos olhos foi FALAICO. O mesmo verbete me remeteu ao nome SELENE. Fato por mim entendido como sincronicidade.
De tudo isso que me aconteceu: tarefas-sonhos-história-sincronicidade-mitologia, eu só posso concluir que se trata de processo de cura.
Conto primeiro a história de Falaico e Selene do sonho e depois conto suas histórias mitológicas.
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Era uma vez um jovem rapaz que se chamava Falaico. Ele acabara de deixar para trás suas últimas brincadeiras de menino. Como uma cigarra que deixa sua velha pele presa em uma árvore e encontra-se pronta para as aventuras da nova fase: voar e cantar mundo afora, assim sentia-se Falaico. Alcançar a felicidade era sua meta.
Já no início de sua nova vida, eis que se apresenta uma grande e bela aventura: Selene. Uma jovem e bela moça, dona de encantos mil. O que encantava Falaico acima de tudo era o andar de Selene. A forma como deslocava-se no espaço, o ritmo de seus movimentos, o seu ir e vir. Aos seus olhos ela andava, flutuava e dançava, tudo ao mesmo tempo. Aquilo o deixava em estado de graça.
Mas ele não sabia como aproximar-se de tanta beleza. Consumia-se dia e noite, buscando uma maneira de demonstrar seu encantamento. Depois de muito tempo, muitas noites em claro, finalmente, ele deu com uma idéia. Levou para ela o mais lindo par de botas do mundo. Afinal o que mais o encantava era o andar de Selene. Nada mais significativo do que algo bonito e confortável para os pés de alguém que se deslocava com tanta leveza e graça.
Ao receber o presente Selene ficou muito feliz e sentiu que ali estava alguém com que ela poderia ir mundo afora. Alguém com tanta sensibilidade que percebera que seus pés mereciam carinho e cuidado. Eram eles, seus pés, que davam a ela o melhor dos sentimentos: liberdade. O que a tornava inteira, plena e verdadeira. Selene não perdeu tempo e calçou imediatamente as botas. Como se esperava, era como se tivessem sido feitas sob medida para seus pés. Selene ficou mais encantadora e bela. Não teve dúvidas de que Falaico era realmente a pessoa certa para acompanhá-la no ir e vir da vida.
Mas por força do “destino” Falaico não sabia nada sobre liberdade e beleza. A beleza o fascinava e ele só via um jeito de tê-la sempre diante de seus olhos: aprisionando-a. Quando buscou uma maneira de atrair a atenção de Selene, na verdade ele planejara uma armadilha para capturar aquilo que tanto o encantava. Quando a presenteou com as botas, sua verdadeira intenção era tornar-se “dono” de tal beleza. Tê-la para si. A estratégia que usou foi por cola no interior das botas. Uma vez calçadas, Selene não mais pôde removê-las de seus pés. Ao ver-se prisioneira de tal armadilha, Selene nunca pôde perdoar Falaico. Ela nunca mais sentiu-se inteira e plena. O que lhe dava esse sentimento fora-lhe roubado por alguém em quem ela depositara toda sua confiança. Sem liberdade, a beleza de seu existir mirrou e acabou-se. Tudo o que Selene pôde levar vida afora foi arrastar um par de botas que se tornaram grilhões em seus pés.

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As histórias mitológicas de Falaico e de Selene, segundo o dicionário, são de que Falaico era um rei grego que governava com muita tirania a cidade de Ambracia. Para livrar a população da cidade da violência do rei, Ártemis, deusa da caça, convidou o rei para caçar e concedeu a ele capturar um filhote de leão, que o rei levou para seu palácio. Pouco tempo depois uma leoa em busca do filhote estraçalhou o violento rei. A história de Selene é de que ela é a própria Lua, filha do deus Sol, que atravessa o céu em uma carruagem de prata puxada por dois cavalos completamente brancos. A beleza de Selene desperta a paixão de inúmeros amantes.
Há que observar mais algumas sincronicidades: o encanto do rei Falaico pela beleza do filhote de leão, a captura do mesmo e o fim trágico do rei, por tirar a liberdade do filhote. Tanto o jovem Falaico do sonho como o Falaico mitológico são fascinados pela beleza, mas não compreendem que ela só existe em companhia da liberdade. Outra é a admiração causada pela deusa Selene em seu movimento pelo céu, puxada pelo seu par de cavalos brancos e o andar de Selene do sonho com seu par de botas.

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Quintino S. Martins
13 de maio de 2010.

(Kury, M. da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana - J. Zahar Editor.)